Antes de qualquer coisa, convém uma pequena advertência. Conversando com um amigo sobre o segundo pilar apontado no título, ouvi que Cabo Anselmo lembrava imediatamente delação. Sei bem disso, mas a referência a Anselmo, como inspirador de certo discurso, não tem a ver com seu caráter delator, mas com a incitação irresponsável a um esquerdismo supostamente radical, que serve bem à direita golpista. Enfim, a lógica Cabo Anselmo, para mim e para este texto, tem a ver com esta incitação irresponsável, não com a delação.

Ao contrário de países vizinhos, o Brasil não tomou cuidados para evitar um golpe que subverta a vontade popular nas próximas eleições para a chefia do Estado. Ao contrário do que a maioria da imprensa diz, o Brasil tem níveis de liberdade que implicam verdadeira negação da soberania, da constituição e dos crimes de injúria, calúnia e difamação.

Contrariamente ao que fizeram Argentina e Venezuela, o Brasil, mesmo governado por gente que pensa mais no povo que na minoria de 15%, achou que era possível ter imprensa concentrada, monopolista, sem limites e entregue a capital estrangeiro. Os que estão no governo acreditaram que era possível comprar esta imprensa e receber dela o mínimo, ou seja, que ela fosse imprensa e não partido político. Mesmo tendo provas contínuas da impossibilidade, o governo continuou pagando para ser caluniado dia e noite…

Contrariamente ao que fizeram Venezuela e Argentina, o Brasil, pelos governos que estão há treze anos, acreditou que a honradez é paga com honradez e que não existem identificações de classe nem subornos. Não purgou a cúpula do judiciário dos golpistas e experimentou o sabor amaríssimo de juízes ignorantes, recalcados, vaidosos, cúpidos, farisáicos, oportunistas e com nenhum apreço à constituição que supostamente guardam. Vimos, então, o espetáculo horrível de juízos de exceção que degradaram homens inocentes e que foi a antesala da interdição de gente querida pela maioria.

Os que governaram e governam o país há treze anos trabalharam para reduzir a desigualdade social, o pior problema do país, e tiveram êxito marcante. Não trabalharam suficientemente para que a maioria tivesse consciência de classe e para que esta maioria pudesse escolher livremente doravante, todavia. Eles ignoraram os instrumentos do golpe e acreditaram que o povo e os que vendem para o povo seriam apoio suficiente.

Ignoraram que há, sempre, quem os queira tirar não apenas do poder, mas da vida, e que têm tenacidade para seguir a tentar. Sinceramente crentes que todo poder emana do povo, deixaram agir com poder de Estado os que nada têm emanado do povo e não tiveram coragem de dizer que funcionários a 10.000,00 euros mensais não podem trabalhar pelo povo, porque num país de renda mensal média de 300 euros, quem ganha 33 vezes mais que a média não é povo e, obviamente, age por sí e por quem está acima.

Aceitaram o jogo udenista, porque parte de seu êxito deveu-se a terem feito discurso udenista, lá atrás, há quinze ou vinte anos. O moralismo, aquilo que passa por dizer que tudo se trata de fulano ou sicrano ser ladrão ou infiel ao cônjuge ou adicto de drogas ilegais ou de álcool, foi uma das bases de seu discurso inicial. Hoje, este discurso é base da oposição a eles, com a amplificação da imprensa e da corporação judiciária.

Nunca insistiram unicamente nas conquistas relacionadas à melhoria na desconcentração da apropriação de rendas, que efetivamente realizaram. Nunca disseram que o ponto central da dinâmica social é a luta de classes, porque aliaram-se àqueles que passaram a vender mais. Assumiram a vergonha de serem de esquerda – que foram, realmente – e aceitaram as regras do discurso da oposição, que insiste em moralismo e na inexistência de esquerda e direita.

O grupo que hoje é governo no Brasil terá êxito nas eleições do ano próximo, mesmo que a seleção nacional não triunfe no mundial de futebol. Mas, ter êxito nas urnas, no voto, na preferência dos eleitores, não significa assumir o posto obtido pelo voto. Haverá um judiciário ávido por encontrar alguma questiúncula, um detalhe qualquer, ou mesmo servir-se de farsa pura e simples – e há precedente – para interditar a opção que não seja a do retorno da concentração de rendas e da entrega ao estrangeiro.

Há uma opção para o grupo que está no governo, se quiser resistir ao udenismo, ao esquerdismo Cabo Anselmo e ao judiciário: falar para a maioria e deixar claro o que ganharam e deixar claro o que é o judiciário e de que é composto. Com relação ao moralismo udenista e ao pseudo esquerdismo Cabo Anselmo, o primeiro deve ser ignorado e o segundo deve ser mais que ignorado.

Um pequeno pós escrito tem lugar. O que chamo de lógica cabo Anselmo fica claro num episódio recente e no comentário que fez um jornalista que posa de simpático, aberto e outras coisas bacaninhas do gênero. O Kenedy Alencar – jornalista que é empregado do Frias da Folha de São Paulo –  faz de conta que é livre e que segue sua pauta.

Pois bem, há cinco ou mais dias, o Congresso Nacional, em sessão plena, devolveu o mandato do Presidente João Goulart, deposto pelo golpe militar de 1964. Na ocasião, em abril de 1964, o congresso, amedrontado, considerou vacante a Presidência da República, o que ajudou a malta golpista a dar aparências jurídico-formais ao golpe.

Na sessão que anulou a farsa de cinquenta anos atrás, os comandantes do exército, da aeronáutica e da marinha de guerra estavam presentes e não aplaudiram quando o Presidente do Senado proclamou a anulação da vacância declarada cinquenta anos antes. Todos os demais presentes aplaudiram quando da formal proclamação.

O tal jornalista Alencar – de prenome Kennedy – escreveu artigo a dizer e pedir que a Presidente Dilma punisse os comandantes militares porque não aplaudiram a reabilitação de João Goulart. E essa cretinice repercutiu e foi repetida, tanto por quem fazia ironia, quanto por aqueles que viram nisso um grande arroubo de esquerdismo cioso da história.

Isso do Kennedy Alencar é Cabo Anselmo puro. Primeiro, militar não aplaude nada. Segundo, aplaudir não é obrigação de ninguém. Terceiro, não aplaudir não é falta funcional, portanto não é infração. A Presidente Dilma não tinha, nem podia punir algo que não é infração.