A Poção de Panoramix

Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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Os mortos não têm sede.

A água é recurso já muito escasso e a escassear mais e mais. Nesta perspectiva, os mortos, que não têm sede, talvez breve venham a ser preferíveis aos deuses. A competição por recursos naturais escassos vem acirrando-se intensamente e tem sido arbitrada em favor dos estratos 10% superiores de formas clássicas, ou seja, por meio de repressão física e exclusão geográfica.

Não vou flertar com malthusianismo superficial, nem investigar se melhor equalização distributiva invalida as teses da insustentabilidade do crescimento demográfico em face das possibilidades do planeta. Abstraindo-se da hipótese da equalização na apropriação dos recursos, fica evidente que, para a manutenção dos níveis de consumo dos 10% superiores, a existência de um oceano de indigentes é um estorvo e obstáculo.

Os ganhos de produtividade na agropecuária tampouco retirarão o obstáculo ao bem estar dos 10% que são os restantes 90% a consumirem – por menos que seja – recursos naturais. A produção de um quilo de carne bovina, por exemplo, consome aproximadamente 15.000 litros por quilo. O arroz, por exemplo, consome aproximadamente 2.500 litros de água por quilo.

Muitos perceberam que aquela tragédia havida na eurásia no século XIV – belamente tratada no Decamerão – foi, ao depois, uma das condições de desenvolvimento da região, mesmo que as perdas humanas – força de trabalho e conhecimentos – tenham sido muitas e quase indistintas entre classes sociais.

Hoje, objetivamente, a existência de gente demais no mundo, mesmo que indigentes com níveis de consumo relativamente baixos, é um obstáculo à pretensão dos mais ricos à sua sobrevida em condições ótimas, o que inclui qualidade sanitária e segurança alimentar. Esse obstáculo sobrepõe-se à aparente vantagem que seria a potencialidade consumidora dessas massas indigentes. Elas não interessam como mercados, enfim.

Há momentos na história em que o excedente humano não serve nem interessa aos de cima nem como escravos a custo de pouca comida e alojamento precário. Ao reverso, este excedente está a ocupar e consumir recursos daquelas zonas que os 10% comumente denominam santuários, que são tanto reservas, quanto rotas de fugas para hipóteses de catástrofes de grandes dimensões.

Com a Patagônia argentina tem-se um perfeito exemplo. Há um projeto sistemático para seu esvaziamento das populações originárias locais e de preferência que os indígenas pereçam todos na retirada, porque tampouco são desejados a povoarem as periferias de Buenos Aires, Rosário ou Córdoba. Esse desejo – que é o desejo de expurgo físico dos pobres – às vezes assume contornos místicos de refundação, como na novela Kalki, de Gore Vidal. Nestas visões a purga não é propriamente dos pobres, mas de todos que não preencham os requisitos para serem os refundadores de uma nova e purificada humanidade.

A América do Sul e a África sofrerão processos de extermínio massivo dos pobres e indigentes que não se articulam aos subsistemas necessários à boa vida dos mais ricos. Há uma superpopulação de escravos inúteis, na visão do 01% e de seus minions, e o tratamento destinado à inutilidade é a purga.

O 0,1% sabe muito bem que não se mata tanta gente à bala, nem mesmo mandando os destinados à morte cuidarem da tarefa de se matarem reciprocamente, como se faz em África, acho eu que por mera diversão. Fosse isso possível, os japoneses o teriam realizado na China, convém lembrar. Tampouco se usam armas nucleares, coisa detestada pelo 0,1% pelo que têm de nada seletivas.

O que mata com mais eficácia, massivamente e com bons níveis de seletividade social, são água suja e bactérias. Não à toa o método que uma breve observação permite perceber que é o eleito para África. Somados a má nutrição, matam muito e relativamente rápido e permitem que se defendam eficazmente os que não estão marcados para a eliminação. Este projeto será aplicado na América do Sul, apenas é irresponsável prever datas…

 

 

 

 

A canção de amor de J. Alfred Prufrock.


“E valeria a pena, afinal,
Após as chávenas, a geléia, o chá,
Entre porcelanas e algumas palavras que disseste,
Teria valido a pena
Cortar o assunto com um sorriso,
Comprimir todo o universo numa bola.”

T. S. Eliot.

White Cup and Saucer, 1864, Henri Fantin-Latour oil on canvas, 19 x 28 cm.

Então no último dia de janeiro de um hoje longínquo 2015 eu publiquei no Facebook o trecho do poema de T. S. Eliot, e a pintura de Henri Fantin-Latour.
Hoje eu não consigo pensar num lugar pior para ter feito a publicação. Mas também não deixo de achar bom que ele, o Facebook, me recorde as postagens antigas.

Brasil a caminho de ser Líbia.

A regressão lenta e gradual da hegemonia estadunidense é o processo mais perigoso que já viveu a humanidade. São comuns as comparações entre os impérios romano e estadunidense, no que têm de paralelismos nas suas criações, apogeus e fases de declínio, mas o que se prefigura agora é diferente, para além das diferenças óbvias que há entre processos históricos separados por dois mil anos.

A exacerbação retórica contra os países malvados e perigosos, a russofobia que não teme o ridículo profundo, a provocação irracional e inútil à China, a multiplicação de ações de desestabilização política de países antes soberanos, tudo isso são sintomas do declínio. Não alinho entre os sintomas as múltiplas guerras, porque estas são inerciais e funcionais aos interesses do complexo industrial-militar; são, enfim, bons negócios.

As evidências são indisfarçáveis. As mais significativas delas são a histeria e o primarismo retórico, coisas de quem está com pressa e algum medo. O controle do médio oriente, que já foi absoluto, apresenta fraturas, depois que a tentativa de inviabilizar a Síria como país soberano fracassou. A rearticulação de forças por meio da aliança israelo-saudita não parece muito tendente ao sucesso.

A tentativa de sabotar as rotas comerciais clássicas entre a Europa e a China, por meio da guerra no Afeganistão, está em vias de exaurir-se e provar-se afinal inútil. O ensaio de tentativa de desestabilizar o sudeste asiático, para criar dificuldades para a China, será travado no nascedouro pela China. Afinal, esta última tem condições de reação e inicia os movimentos do que é a maior ameaça à hegemonia estadunidense: a compra de óleo por outros meios que não o dólar norte-americano.

O dólar norte-americano é meio de troca e reserva de valor universal. Enfim, uma moeda que é também um ativo, porque lastreada em petróleo e urânio enriquecido. Isso permite aos EUA criarem dinheiro muito à vontade e exportarem inflação, ao tempo em que importam bens e serviços. É a causa mais remota da situação peculiar dos EUA, que podem ser ricos mesmo quando perdem capacidade industrial e sustentam imensos défices.

Seria estúpido e irresponsável tentar prever datas, ou um cronograma definido das etapas deste processo. Contudo, é claro que a capacidade dos EUA de intervir e desestabilizar países e regiões, para instaurar o caos funcional à dominação, reduz-se muito nas áreas principais que são a Ásia, as estepes e o oriente próximo. As articulações entre China, Rússia e, em menor intensidade, destes com o Irã e pontualmente com outros países, minaram o poder de interferência na Ásia.

Que a Ásia, mais especificamente o sudeste asiático, seria esfera de influência da China, é algo trivial. Porém, que uma tentativa de destruição de um país, como na Síria, por meio de guerra por procuração financiada pela Arábia Saudita, tenha dado errado, é algo novo. O mesmo pode-se dizer da tentativa de destruição do Iraque que, ao contrário das expectativas iniciais, conseguiu reorganizar-se e alinhar-se ao Irã.

Essa modalidade de intervenção que se tem feito é, por um lado, a mais selvagem possível e, por outro, a mais rentável para os dois setores mais poderosos do império: as finanças e a indústria bélica. Para atacar um país soberano rico em recursos minerais – ou estrategicamente localizado – inicia-se por fomentar revoltas internas que, para qualquer observador atento, não fazem qualquer sentido, dada a desproporção entre a realidade e do que se reclama. Agentes infiltrados dão conta desta tarefa de alimentar com dinheiro e narrativa pronta as revoltas difusas e histéricas.

Chega-se a um ponto onde as fraturas sociais e de grupos étnicos ou de interesses são irreversíveis. É a fase da guerra civil, aberta ou fragmentada e localizada. Neste ponto, a imprensa corporativa, articulada intimamente aos interesses imperiais, começa a repercutir seletivamente episódios de violência, com mentiras se for necessário. A imprensa corporativa não tem quaisquer escrúpulos em mentir, isto deve ser repetido sempre que possível.

O conflito será alimentado com dinheiro e armas e com mercenários, se for necessário. Nesta altura, as estruturas sociais, estatais e de serviços privados estarão em ruínas, a magnificar a precariedade das vidas das pessoas. Deste ponto em diante, duas opções apresentam-se: 1 – deixar o processo degenerativo seguir adiante com os elementos originais desencadeadores, até que o antes país torne-se um nada; ou 2 – intervir militarmente com o nobre propósito de cessar a carnificina que o próprio interventor criou.

A escolha entre as duas linhas finais de atuação acima mencionadas dependerá de muitas variáveis, mas a mais importante certamente é ter ou não o país alvo grandes riquezas minerais. Caso tenha, é provável que sofra o ataque militar e depois experimente a ocupação por contingentes mercenários. Isto é muito lucrativo para o imperialismo, pois destrói um país e paga a guerra contra ele com os próprios recursos dele.

É algo esplêndido, como um produtor de bens ou serviços conseguir criar a própria demanda, como obrigar o outro a consumir o que não quis a esgotar suas economias. E, depois, ainda se empresta dinheiro a juros para o arruinado reerguer-se um pouco, para arruinar-se novamente mais à frente. Convenhamos, é um negócio muito bom.

Pois bem, o Brasil é riquíssimo em recursos minerais, nomeadamente hidrocarbonetos e minérios de ferro e bauxita, além de água doce. O declínio da influência e da capacidade de desestabilizar dos EUA, na Ásia e no oriente próximo fará com que se voltem ao quintal de sempre: a América do Sul. Aqui, ainda contam com o servilismo das classes alta e média alta colonizadas culturalmente e sofredoras de um patético complexo de inferioridade.

O processo de destruição de soberania e alienação de riquezas nacionais, que começou com o afastamento da presidenta Dilma, a partir de um compromisso entre a imprensa e as corporações estatais judiciais e com a participação relevante das classes médias, não culminará em situação estável e pacífica. Mesmo que não culmine com um contragolpe ou uma revolução popular, é certo que paz e estabilidade não são situações prováveis nos curto e médio prazos.

A degradação das condições de vida das classes média baixa, baixa e dos totalmente excluídos será muito rápida. É pueril achar-se que as insatisfações resultantes serão canalizadas de forma organizada por tal ou qual vertente político-ideológica. O controle social por meio de discurso mediático, neste estágio, será ineficaz. O controle terá de ser mediante violência física, a cargos das polícias e de serviços privados de segurança. Essa modalidade, porém, tem a desvantagem de retroalimentar a violência…

A partir de um certo de nível de conflituosidade e de instabilidade política – que provavelmente assumirá a forma de quedas sucessivas de governos e luta brutal entre as corporações públicas pelos recursos minguantes – estão dadas as condições para a intervenção do império. Convém apontar que, para o império, o caos é funcional ao saque de riquezas e este saque é mais vantajoso que um mercado consumidor mais ou menos organizado e pujante.

Após se terem apropriado das estruturas de produção de petróleo e gás, de extração de minérios, de produção de grãos e de acumulação de águas os agentes do império terão de proteger militarmente estas estruturas. Inicia-se a exceção formal e material à soberania neste ponto, com as autorizações de atividades bélicas abertas em solo nacional, ou por meio de mercenários de segurança privada.

Os três setores principais do império ganham enormemente com esta configuração. O complexo industrial militar vende seus equipamentos e seus serviços, o setor petroleiro saqueia o país parasitado sem lhe pagar nada e o setor financeiro oferece crédito a todos, bem como serviços de lavagem de dinheiros. E o pais destruído paga tudo, ou seja, paga pela própria destruição, e precipita-se no caos.

Este não é um cenário tão remoto para o Brasil, como gostam de pensar os que não anteciparam nada do que hoje vive-se…

 

 

 

 

Reversão gay: não se pode autenticar este discurso aberrante.

O Brasil regressa intelectualmente a estados quase selvagens. Os sinais desta regressão são muitos e a violência desmedida é um dos mais destacados. Neste ambiente, volta a se difundir a proposta de terapias de reversão de homossexualismo, o que atende popularmente pelo nome de cura gay.

Esta estupidez aberrante – porque cura pressupõe moléstia – encontra muitos adeptos entre grupos evangélicos não históricos, neo-pentecostais, mas não somente entre eles. Na pequena burguesia alvo das comunicações centradas na pauta de costumes e tomada por uma fúria difusa contra tudo, a idéia é bem aceita.

Trata-se de uma idéia aberrante, evidentemente. Primeiramente, um dado natural que não implica redução de capacidades não é passível de cura, porque não se inscreve no domínio de doença. Segundo, por ser um dado natural, não se cuida de algo proveniente da vontade – não encontrei palavra melhor – e, portanto, é irreversível.

Dizer que, mesmo que que se tratasse de algo reversível, teríamos de indagar o porque de ser desejável esta reversão é entrar em campo muito sofisticado para algo proposto por gente tão primária. Seria jogar no campo do moralismo rasteiro dos intérpretes dos intérpretes dos intérpretes das vontades de um Deus que se recusa a falar para o mundo todo e por sua própria boca.

Diante deste e de outros discursos aberrantes semelhantes, só percebo duas posturas minimamente eficazes. Ambas conduzem a dois estados de ânimo que podem arrefecer a horda pequeno burguesa: a contradição evidente e a vergonha, ainda que momentânea. São o escracho e a saturação do absurdo. Discutir sensata e racionalmente é fazer um contraponto inútil com que abandonou a sensatez e a racionalidade há muito.

As reações à saturação do absurdo, ou extrapolação do absurdo, são muito interessantes e reveladoras. Essa tática leva o selvagem a ver-se privado da aparência de racionalidade com que se disfarça e a despir-se muito rapidamente das aparências, pois sente rápido o gosto saboroso de sangue. Outros, calam-se por vergonha.

Como o assunto tem-se tornado comum, era previsível que chegasse às mesas de cafés e botequins. Assim como previsível é que os frequentadores adeptos da aberração queiram extrair dos demais opiniões autenticadoras das suas. As opiniões autenticadoras do assunto são as de concordância ou de discordância que giram em torno ao suporte teórico prévio da falsa racionalidade. Há um campo previamente delimitado de objeções e concordâncias e tudo aquilo proferido neste campo é autenticador.

Desconcertante é lançar algo que não faz ponto nem contraponto. A uma insinuação de um fulano de que queria saber minha opinião, resisti ao impulso inicial de simplesmente dizer que não discuto idéias tolas e bárbaras como esta. Preferi dizer isto de outra forma e foi experiência psico social interessante.

Perguntei por que o fulano estava preocupado em curar incuráveis, degenerados essenciais que escolheram a inversão e a afronta aos princípios sagrados do natural. O desconcerto foi tão grande, que o selvagem nem se lembrou de tirar do bolso alguma formulação de caridade cristã, de dever de ser bom e resgatar os desviados. Ficou entre atônito e pensativo.

Neste passo, mais uma volta no parafuso. Por que não simplesmente eliminar os que desviam voluntariamente da ordem natural e imutável das coisas? Nesta altura, eram perceptíveis os inícios de duas sensações no meu interlocutor: começava a sentir o aprazível gosto de sangue da vítima e, também e meio contraditoriamente, um pouco de vergonha.

A extrapolação do absurdo retira o selvagem do disfarce e do conforto da aparente racionalidade. Fá-lo revelar o que realmente quer: eliminar o diferente, quer matar. Fá-lo revelar sua covardia em não se mostrar fascista abertamente. Assim, pode-se despir o fascista que desonestamente propõe a aberração com vernizes de racionalidade de almanaque.

 

 

 

Por medo e ignorância.

A classe média é o eixo de transmissão do poder. Não é ela que toma as grandes decisões, evidentemente, mas é ela que permite executar os planos dos reais detentores do poder; é instrumental, enfim. Isso deve-se, em parte, ao fato de ocupar os postos chaves da burocracia estatal.

Nesta classe estão os formuladores de narrativas de justificação do governo no interesse do grande capital, como são os acadêmicos e os jornalistas de ocasião, por exemplo. Essas personagens são necessárias para o estabelecimento do domínio mais ou menos pacífico das grandes massas de pobres e remediados.

Em geral, os indivíduos não têm consciência da articulação da classe nas estruturas que conformam o real e dão fluxo ao exercício do poder. E tampouco costumam ter consciência de seus papéis individuais intra-classe. Essa falta de percepção, ou percepção parcial e confusa, é fundamental para o bom desempenho de seus papeis esperados.

O ponto central é agir estritamente dentro da lógica da luta de classes, mas em mão única e sempre a negar a existência de luta de classes.  Esse grupo é levado a isto por obra da imprensa corporativa que, praticamente, tem apenas esta classe como público alvo, porque os extremos não precisam ser convencidos de nada e seria demasiado caro construir três narrativas distintas.

O medo e a ignorância, características destacadas desta classe, ajudam bastante na tarefa de levar o grupo a trabalhar pelos interesses dos de cima e para travar os avanços dos de baixo. Convém fazer a ressalva de que essa instrumentalização não significa que a classe média não atue por seus próprios interesses, embora os resultados para a classe dominante sejam maiores.

Os médio classistas são levados a identificarem-se com os estratos superiores, o que se percebe até na simbologia visual, ou seja, nos trajes e nos trejeitos que emulam. Acreditam numa comunhão de interesses, que seria baseada na aliança contra os de baixo. Sucede que a parte que lhe cabe na apropriação dos resultados do trabalho é muito menor que a destinada à classe dominante. E a desproporção é tamanha que bastaria para despertar quantos pensassem com as próprias cabeças.

São como feitores de fazendas, prontos a servir aos interesses do fazendeiro e açoitar os trabalhadores, em troca de pouco, materialmente, e da honra de sentar-se na mesma mesa uma ou duas vezes por mês. Fazer tais serviços implica um nível muito baixo de auto percepção, além de necessidades materiais, claro.

Ela vive a luta de classes, uma realidade tão tangível que precisa ser constantemente negada. Essa vivência dá-lhe medo das grandes massas, que anseiam por ganhos materiais na proporção em que quase tudo lhes falta. A classe média é suficientemente sagaz para perceber que alguma redistribuição pode ser realizada em cima da sua parte da apropriação e teme.

A contradição surge na percepção das relações com o grupo que está acima. Embora também tenha medo dos de cima, não é da mesma forma que teme os de baixo, pois há um elemento reverencial, próprio do medo que se tem do que se anseia ou se tem por modelo ideal. Não se percebe a luta de classes nesta relação entre médios e altos, para enorme benefício dos que estão em cima.

O médio classista tende a ser conservador e a acreditar, assim, que as coisas são de tal maneira porque são e não poderiam ser diferentemente. Por trás desse simplismo, claro, há vários argumentos e narrativas de justificação do é assim porque é, para que essa petição de princípios e primarismo abissal não se mostrem tão claramente. Haverá, sempre, o recurso ao que se convencionou chamar meritocracia, que é nada mais que inércia social.

Essa negação da luta de classes conduz, eventualmente, o grupo a buscar perdas para ele mesmo. Às vezes essas perdas são suportadas por causa da recompensa que é ver os mais de baixo perderem mais, porém nem sempre esse deleite demofóbico é capaz de anestesiar totalmente os efeitos do próprio retrocesso.

A desestabilização política no Brasil foi obra planejada desde fora. O consórcio entre imprensa corporativa e sistema judicial comandou as ações que culminaram no golpe de Estado e no caos que sobreveio. E nessa operação a classe média teve papel fundamental, pois foi ela a agente incansável no exercício dos micropoderes pouco percebidos.

Sucede que o caos é funcional ao projeto externo de apropriação de riquezas naturais, mas não é interessante para a classe média, principalmente acompanhado de depressão econômica e destruição programada do Estado.

 

 

 

O caos é uma face visível da superestrutura.

O processo político brasileiro atual não oferece a previsibilidade que os costumeiros analistas tentam apreender e expor. Ele só tem alguma previsibilidade no âmbito macro, se olhadas as coisas mais ao de longe, mirando-se as linhas mais gerais, nos seus aspectos geopolíticos, ou seja, nas articulações com interesses maiores e externos.

No plano micro, aquele das jogadas e movimentos cotidianos, oferece-se o caos e um nível elevado de imprevisibilidade. Isso mostra-se claramente no uso constante da expressão blindagem e na surpresa quando se verifica o levantamento desta blindagem relativamente a certas personagens, que são deixadas a arderem nas fogueiras da inquisição moralista pela imprensa e pelo subsistema judicial.

O interessante, realmente, é a surpresa tida com o efeito guerra total a que se chegou, presentemente. Esse efeito não se pode dizer resultado de um planejamento prévio meticuloso que antevia todas as fases do processo com boa definição e ordenação. Mas, ele é um efeito necessário da forma de domínio estrutural que há. Neste sentido, o caos – e pouco importa qualificá-lo aparente ou não – é produto da superestrutura e previsível sua instalação.

Que haveria caos era esperado, tanto porque os movimentos golpistas desestabilizariam um país grande e complexo, quanto porque o caos em si é um elemento estratégico. Mas, os movimentos intracaóticos, táticos e estratégicos, não tem um nível de previsibilidade que permita análises micro para além da narrativa do já acontecido.

É preciso identificar e isolar os grandes objetivos que subjazem ao movimento golpista no Brasil, para não se cair na mera narrativa do cotidiano, com a identificação de um e outro ponto tático: alienações de soberania e de riquezas naturais. Esses são os movimentos por trás de toda a dinâmica posta em marcha, em que o caos interno da guerra de todos contra todos é a face visível.

Os agentes locais da desestabilização do país – não apenas das formas democráticas – concorrem por poder e dinheiro, duas coisas que veem, ou de fora, ou do Estado brasileiro, ou das outrora grandes corporações privadas nacionais. Era previsível que esta concorrência se acirrasse a ponto de atingir a guerra ampla e, em alguns casos, a autofagia por erros táticos e estratégicos comuns nos processos demasiado vertiginosos.

Notadamente nas corporações públicas, percebe-se avidez crematística sem precedentes, exatamente no momento em que o Estado tende a reduzir-se, de forma geral, e em que reduz-se drasticamente a arrecadação, especificamente, o que é uma consequência obvia do ambiente recessivo. O nível de apropriação financeira a que chegou o subsistema judicial é insustentável e o grupo deve percebe-lo, o que talvez explique a lógica de levar ao máximo o mais rápido possível.

A obtenção de poderes formais ampliados é condição necessária do aumento da apropriação dos recursos do Estado. Para tanto, foram necessárias bodas com a imprensa corporativa, que é o cônjuge mais poderoso, embora se esforce para não o evidenciar. Desse casamento surgiu o slogan moralizante fundador: na política todos são iguais e sujos. Era necessário instalar esse moralismo esquizofrênico.

Todavia, convém lembrar que tudo isso é política e, assim, não se mata a política, nem se a refunda redimida de pecados. Apenas promove-se a troca dos ocupantes de certos postos ou se tenta a instalação do Estado corporativo, que atendia por outros nomes em tempos pretéritos. E a habilidade política dos políticos em sentido estrito tende a ser superior à dos demais agentes que se aventuram na atividade, sem antes terem pedido votos.

Fora de dúvidas neste panorama é que a dinâmica caótica seguirá como força condutora do processo por mais tempo e não parece ser pouco. E que, assim postas as coisas, os objetivos de alienação de soberania e de riquezas serão atingidos.

 

As construções do interdito e do menos ruim: Le Pen e Macron.

O financismo globalista venceu as eleições presidenciais francesas por conta da precisa atuação da imprensa corporativa, que se alinhou explicitamente ao candidato Emmanuel Macron e usou as estratégias corretas à vista do público destinatário de sua narrativa. Chamaram-no centrista e isto foi ponto central.

De certa forma, a disputa concentrada no campo direitista gerou uma necessidade de se renovar o discurso favorável ao pólo financista globalista, pois a situação é diversa da oposição com a esquerda – seja a real, seja a fictícia. Criou-se, então, um banqueiro egresso da casa Rothschild e fermentado por think tanks direitistas centrista, por mais sem sentido que isso possa parecer a quantos informem-se razoavelmente.

Mas a criação do centrista foi exitosa, por um lado, e fez sentido, por outro. Teve êxito porque delimitou a oposição formal à candidata rotulada extremista. E fez sentido porque o termo centrista referiu-se apenas à pauta de costumes, esquecendo-se totalmente qualquer significação sócio-econômica que pudesse ter.

O centrismo e o extremismo foram definidos em termos de costumes e direitos civis. A imprensa evita a todo custo aproximar-se de assuntos concernentes a distribuição de riquezas e a soberania, que são marginalizados como relíquias de tempos passados. Quando trata disso, é superficialmente e a partir do manual de lugares-comuns do liberalismo triunfante e axiomático, aquele dos termos eficácia, modernidade, reforma e tantas outras tolices semelhantes, que nada significam além de compressão social.

O extremista – de esquerda ou direita – é o banido, o interditado e maldito, em relação a que todo o resto é preferível. Muitas vezes, o interdito é construído por justaposição de adjetivos que já são anacrônicos à vista do que atualmente representa. A candidata Marine Le Pen, muito mais que fascista, no sentido adequado do termo – sentido que remete à história – é a representante da insatisfação dos pobres de direita. Ela é o nacionalismo de direita, enfim, embora em formato diferente do gaulismo.

Mas ela foi demonizada, como era previsível, e as eleições rumaram para uma situação muito fácil para o vencedor. Contra o proibido tudo é válido, mesmo que o outro perceba-se como apenas o menos ruim. Ou seja, há percepções relativas que têm um alcance pre definido, que não podem ir a fundo.

Neste caso francês, o dito acima aplica-se às eleições presidenciais, apenas. Não se aplica ao governo que será constituído depois das eleições legislativas, nem às convulsões que haverá com a aplicação das reformas liberais precarizantes das situações dos mais pobres.

A situação que criou a insatisfação por trás do amplo apoio obtido por Le Pen não será revertida pelas políticas prometidas por Macron. Antes, será amplificada, como é previsível na medida em que das causas provém as consequências. E, passadas as eleições, a narrativa usada no embate não serve de remédio para a realidade cotidiana.

 

 

A não traição dos intelectuais.

É comum haver surpresa com a cooptação dos intelectuais provenientes da academia pelos think tanks mantidos pelo capital financeiro deslocalizado. Mas, esta cooptação não deveria surpreender, quando se percebem os locais social e psíquico do intelectual de academia. É terreno propício, desde a origem, na verdade.

Por causa das eleições presidenciais francesas, o assunto volta-me à mente. O que um dia foi partido socialista, hoje é um disfarce de partido, dominado por prepostos do sistema financeiro. Alguns migraram para formação de agremiações mais airosas ainda, daquelas que se dizem não agremiações e veículos de um novo todo feito de velho.

Os políticos precisam de discursos estruturados, articulados a uma narrativa maior, que não podem perder tempo a elaborar. Há quem desempenhe esta tarefa de compor os discurso e a narrativa, evidentemente, e que por isto receba paga, também evidentemente. Esses são os intelectuais da academia, que têm a vantagem de parecerem desinteressados.

Mais que serem os sujeitos capazes de estruturar a narrativa, eles são um meio de a estruturar a partir do mito da imparcialidade, porque são científicos. A narrativa política precisou tornar-se negativa da política, fazendo-se forte na ausência de escolhas, ao invés de na sua substância real, que são as escolhas. O impossível de ser diferente entrou nos discursos políticos, por meio das invariáveis teses econômicas e sociais.

O produto oferecido pelo intelectual de academia é axiomático e parcial, por mais que tenha camadas de falsa dialética e de considerações de opostos ou diferentes. A tese serve a um propósito e este é, na imensa maioria das vezes, de concentrar mais e mais a apropriação do que é produzido.

O intelectual de academia – e não precisa provir da ENA – é, antes de tudo, um ser vaidoso e certo de estar a ser constantemente injustiçado no que concerne ao reconhecimento do seu talento e capacidades. Essas características fazem da maioria penas de aluguel potenciais, munidas, sim, de boas capacidades discursivas.

É frequente o encontro dos banqueiros, dos patrões de imprensa e dos intelectuais de academia ávidos por jantares bons…

 

Demofobia. Ou, o anseio de que fossem ao menos invisíveis.

O grande dilema filosófico da classe dominante brasileira é se os pobres deveriam ser escravizados ou, antes, todos eliminados fisicamente. É uma dúvida que seria menos atroz se tivessem rudimentos de economia. Essa dúvida leva a que vagueiem a expressar sua essencial demofobia incoerentemente.

Não me entrego ao grande luxo da surpresa, real ou fingida, frente ao que conheço. Mas, ainda me impressiono, aqui e acolá, com as duas vertentes narrativas principais da demofobia: a clara e a disfarçada. Não sei realmente qual a mais perversa, até porque as duas variantes costumam ser usadas alternadamente pelas mesmas pessoas.

Semana passada tive de escutar uma estória interessante, da vertente disfarçada, que agride mais pela hipocrisia subjacente. Fato é que um fulano disse estar frequentando um parque público da cidade e que havia, gratuitamente, aulas de educação física para os presentes. Atividades específicas para velhos, atividades para jovens. Enfim, alguns educadores físicos à disposição dos frequentadores.

A surpresa do meu interlocutor residia exatamente em que as tais aulas públicas, em um espaço público, funcionavam! Ou seja, eram algo desejável, a custo nenhum. A partir daí, comecei a esperar as objeções e não as esperei somente dos tipos que dizem ser fácil fazer coisas boas. Não sabia exatamente qual objeção viria relativamente a algo que era percebido como bom.

E a objeção veio pelo viés liberal puro, pelo viés privatista. Disse o civilizado que aquilo devia custar muito à municipalidade. Ora, primeiramente isso não custa muito à municipalidade e, segundamente, mesmo que custasse era algo bom. E, em terceiro lugar, insisti, há coisas muito mais custosas e que não promovem o convívio e o bem estar em espaços públicos.

Mas, a insistência no custo persistiu, o que me fez antever o que viria a seguir, pois a estas alturas ficava claro. Meu interlocutor disse: deviam cobrar algo para entrar no parque, algo que fosse ao menos simbólico. Essa proposição é de uma estupidez tamanha que as minhas feições devem ter denunciado o que pensei. Achei que fosse válido ser honesto e redargui: o acesso a praças públicas não é cobrado em parte nenhuma do mundo.

Dizer que algo funciona de uma maneira uniforme no resto do mundo costuma ser eficaz para calar os brasileiros de classe dominante, cuja única vergonha real é a de falar inglês com sotaque. Como vivem a dizer que na Europa isso é assim, nos EUA isso é assado, costumam calar-se quando se diz que algo está exatamente como nestes lugares.

Mas, eis que o discurso demofóbico passou a basear-se nas duas vertentes: a explícita e a disfarçada. Enfatizou meu interlocutor que a cobrança que ele propunha era de um valor simbólico. Ora, se é simbólico, para que cobrar? Afinal, o que é um valor simbólico, o que ele simboliza? Feitas estas perguntas, meu interlocutor desagradou-se, o que era previsível, pois teria de pensar, ou ser sincero até o fim.

Essa estória do valor simbólico é a desonestidade intelectual que quase sempre se insinua impunemente. Se é simbólico no sentido de módico, não tem qualquer sentido como fonte de recursos para custear os serviços oferecidos ao público. Se não é simbólico no sentido de módico, visa a afastar os pobres, pura e simplesmente.

E assim, percebe-se o que é: não tem nada de simbólico como barato, porque nada é barato para pobres e miseráveis e, por outro lado, é sim simbólico, porque simboliza que o espaço pretensamente público é, na verdade, privado. A classe dominante brasileira abomina espaços públicos, porque os pobres podem estar neles, pelo menos potencialmente.

O pobres devem ser invisíveis e, preferencialmente, serem eles mesmos a optarem pela invisibilidade, para que a classe dominante não seja compelida a os mandar retirar e tanger para longe, violentamente. Ter de usar destas violências, inicialmente, fere os escrúpulos desta gente, embora não recuem se for necessário.

Eis que se criou um espaço público na cidade, que tem uma espécie de lago. E, como era evidente num lugar muito quente, as pessoas passaram a usar o espaço público e a banhar-se no lago. Um amigo contou-me as reações de asco de espécimes da classe dominante com os banhos dos frequentadores do espaço público. Viram nos banhos falta de educação!

Não é de educação que se cuida, que essa gente nem na tem, nem se preocupa muito com isso. O problema é percebido visualmente a partir de dois aspectos: a quantidade de gente no local e a cor das peles das pessoas. Se o lago estava repleto de gente a banhar-se, a pular, a mergulhar, a espalhar água e se todos ou quase todos eram de morenos para pretos, era um caso de falta de educação.

Este meu amigo disse que redarguiu para o grupo dos fiscais de educação: Ora, no verão infernal de Roma as pessoas entram na Fontana di Trevi. E o mesmo acontece na França, na Espanha, em Portugal… Foi perverso, muito perverso…

 

 

 

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