A ação penal 470 é um embuste montado para afastar José Dirceu da política brasileira, porque ele é um traidor de classe que não se deixou cooptar pelo 01%. Os demais processados com ele estão lá apenas para que não haja um só réu e para as conveniências do enredo farsesco. Neste julgamento de fancaria, stf e ministério público agiram sob ordens da imprensa majoritária ou, no mínimo, com medo dela.

A coleção de aberrações jurídicas presentes nesta ação é enorme. Garantias do juiz natural e do duplo grau de jurisdição tiveram suas violações abertamente defendidas, como se fosse o mais normal, até por gente que diz ter frequentado a escola básica e saber ler. Inversão do ônus probatório em matéria criminal foi defendida pelo acusador e por juízes.

Deformações nas adequações típicas, como, por exemplo, suprimir a realidade e reputar ocorrido o crime de peculato de dinheiro privado. Manipulações de datas, feitas abertamente, como a que reputou ocorrido um crime de corrupção após a morte do suposto corrompido! A farsa do período anterior ocorreu para violar o princípio da irretroatividade da lei penal, porque as penas foram aumentadas por lei posterior ao falecimento do corrompido e queriam a todo custo punir os supostos corruptores com penas mais graves, mesmo que estabelecidas após o fato.

Houve momentos extraordinários em que juízes chegaram a dizer que não havia provas, mas que condenavam porque podiam fazê-lo. Tudo isso causou espanto nos mais bem instruídos e menos imbuídos do desejo linchador porque se esqueceram que juízes – independentemente do tribunal que componham – são gente vulgar, mesquinha e manipulada, como são as pessoas em geral.

Realmente, essa tolice de crer que juízes são sensatos e imparciais é tão difundida quanto infundada. Eles são profundamente sujeitos às pressões quando o caso desperta interesses políticos e mediáticos relevantes e deixam-se aprisionar pelos afagos às vaidades e pelo medo de serem atacados pela moralidade seletiva da imprensa. Nos casos pequenos, suas grandes influências são os caprichos momentâneos e o ir ou não com a cara das pessoas litigantes. A lei é algo que fica muito longe das principais motivações para decidir.

Neste caso, a imprensa resolveu antecipadamente que José Dirceu devia ser condenado, que devia ser considerado responsável pelo maior esquema de desvio de dinheiros públicos do Brasil – embora o processo fale de dinheiro privado – que devia ser linchado em praça pública sem que qualquer outra consideração fosse feita exceto nos termos da comédia novelesca que foi encenada.

E isso deu certo, a despeito da fragilidade e da vulgaridade do enredo da novela oferecida ao público. Deu certo no sentido de instilar nas pessoas da classe média em diante o espírito de linchamento alimentado por moralismo difuso e totalmente cego às violações de direitos e às supressões de fatos. Assim é porque o vulgo basicamente não pensa e facilmente defende qualquer violação de direito e ocultação de fato, desde que a imprensa diga-lhe para proceder desta maneira.

Mas, a farsa é tão grotesta que escandalizou a um e outro razoavelmente alfabetizado e desinteressado em ver sangue e entranhas expostos – são raras as pessoas localizadas neste grupo – e envergonhou timidamente um e outro integrante da corporação jurídica.

Eis que o tribunal que serve de cenário para esta novela decide se os réus de acusações etéreas poderão ter o duplo grau de jurisdição. Ou seja, decidem se uma garantia constitucional óbvia será mantida ou estuprada à luz do dia com caras sorridentes a posarem para câmaras de TVs. Está a depender do voto do juiz mais antigo do cenário, que já disse repetidas vezes que o duplo grau deve ser assegurado.

Se o recurso é admitido, uma de muitas aberrações é afastada. Conviria que as demais também fossem, para que não ficasse a parecer o estado normal de coisas a justiça servir aos desígnios de eliminação política da imprensa. Conviria que a corporação judiciária percebesse que a desonra só pode ser considerada momentânea sob a perspectiva meramente pessoal, o que destoa até mesmo do núcleo do pensamento corporativo, que anseia à conservação de privilégios.

Essa farsa, basicamente, foi o deslocamento do jogo político de seu âmbito próprio para os tapetes dos tribunais, onde se decide sem votos populares e com pessoas extraídas do que há de mais conservador. E, o que há de mais conservador no Brasil é pior que os semelhantes alhures, porque é certo dizer que o pior do Brasil são os brasileiros de classe média em diante. Não há gente mais predadora, vendida, oportunista, mentirosa, rancorosa, mal instruída, sem honra mas com moralidade e superficial.

O protótipo do comportamento dos conservadores é o menino que tem a bola de futebol, chama os outros para jogar e pelas tantas quer proibir os dribles porque não os sabe dar; depois muda as regras e por fim encerra o jogo e guarda a bola.

A encenação do processo contra Dirceu é demonstração de poder extravagante porque significa dizer claramente que a imprensa pode fazer a partir de nada ou quase nada um escândalo mobilizador das camadas médias e despertar nelas os instintos assassinos que guarda cuidadosamente nos armários. É um recado claro para os que insinuem alguma reação efetiva aos interesses dela imprensa e também aviso aos que a ela se alinharem que podem fazer o que bem quiserem.

A resposta ou reação possível dá-se em campos muito estreitos. Primeiro, convém que as pessoas alfabetizadas e não inclinadas ao linchamento sempre digam da farsa que se encena, mesmo que isso resulte imediatamente em nada. Segundo, é preciso elevar o nível da crítica técnica às violações perpetradas na encenação. Ou seja, já que escolheram o cenário jurídico para expurgar José Dirceu, que ao menos tenham algum trabalho discursivo e algum receio por suas contradições explícitas.