A Universidade Federal do Rio de Janeiro produziu um estudo nominado Segundo Relatório Anual de Desigualdades Raciais. Alguns números são reveladores do racismo brasileiro. Os pretos e pardos têm menos acesso à saúde e à educação, por largas margens. Por exemplo, os afrodescendentes com mais de 15 anos apresentam tempo médio de estudos de 6,5 anos e os brancos de 8,3 anos.

As diferenças já foram maiores e vem reduzindo-se muito lentamente. Mas, essas diferenças revelam o que se quer negar veementemente, a custo de agressões frontais à lógica e às evidencias. O combate à evidência intensificou-se com a adoção de políticas afirmativas de inclusão.

A base do ataque às políticas afirmativas, de reserva de cotas, por exemplo, é a negativa das diferenças e dos conflitos. Por outro lado, ao mesmo tempo em que se tenta combater as cotas raciais, tenta-se esconder que a situação de sempre configura uma verdadeira política de cotas a favor de uma minoria que se julga devedora apenas de si, individualmente.

O modelo social brasileiro é profundamente perverso e sofisticado. Ele conseguiu um êxito raro entre os grupos humanos: manter níveis de desigualdades sociais e raciais muito profundos e evitar a explosão que seria natural esperar-se. E fê-lo com níveis de violência sistemática mais reduzidos que em outras experiências do gênero, como a sul-africana, por exemplo.

Claro que há níveis de violência não sistemática avassaladores, ou seja, de criminalidade dita comum. Ela, de certa forma, desempenha o papel repressor que a violência sistemática e organizada tem nos modelos excludentes tradicionais. Ele é somente aparentemente aleatória, porque os números revelam que as maiores vítimas são precisamente dos grupos excluídos e que se devem controlar.

A contenção social e a punição violenta por meio da criminalidade comum ainda tem uma vantagem de cunho psico-social que é afastar a percepção individualizada de culpa, seja de um e outro indivíduo, seja do governo, seja de uma certa classe social. Ela parece mesmo aleatória, embora não seja.

As partes mais engenhosas do formato brasileiro de exclusão são os múltiplos disfarces sob que ele esconde-se. Muitos escritores de grande talento – intelectuais, diriam alguns – contribuíram esforçadamente para a consolidação da idéia de mitigação das diferenças. E, aparente contradição, fizeram-no celebrando uma miscigenação que não foi uma integração. O caso mais notável é o de Gilberto Freyre.

A celebração da miscigenação racial a partir de elementos curiosos ou pitorescos, encadeados com fibras de ciência social, firmou a noção da democracia racial, até mesmo da esculhambação racial, como se no Brasil essas fronteiras se tivessem abolido em um conúbio de lubricidade e promiscuidade racial profunda. O que pode ser muito verdadeiro em termos puramente sexuais, não tem qualquer sentido social, contudo.

Muitos se compraziam em comparar essa suposta democracia racial brasileira com a segmentação evidente ocorrida nos Estados Unidos da América. Ou seja, ativeram-se ao aspecto puramente sexual e cromático da questão, deixando de lado as resultantes estruturais na sociedade.

A miscigenação, no Brasil, deu ensejo a uma estratificação cromática, a uma escala de branquitude a ser galgada constantemente, ao longo de gerações. Uma escala que correspondia, quase que à exata proporção, àquela do ascenso social e econômico. Quer isso dizer que a miscigenação considera-se um caminho programático de despreteamento da população, algo muito diferente de democracia racial.

A configuração da estratificação cromática sempre foi eficazmente disfarçada pela crença na ausência de barreiras raciais, quer dizer, na carnavalização das relações entre indivíduos e grupos de origens sociais e raciais diferentes. O modelo impôs-se fazendo acreditar que existe, sim, hierarquia social, mas que não existe racial.

Todavia, os valores cultivados, nomeadamente os estéticos, também permitem ver que a hierarquização não é apenas social e econômica, mas racial. Claro que descortinam a questão mais sutilmente que os números reveladores da nítida exclusão por raça. Interessam exatamente porque são uma via de percepção mais sutil.

É notável que os padrões desejados de estética corporal, em sua maioria, claro, apontam para o branqueamento. Assim, em exemplo bem redutor, buscam-se cabelos claros e lisos e não o inverso. Buscam-se traços fisionômicos caucasianos e não é à toa que este país é o campeão mundial na área da cirurgia plástica!

É inegável que há forte miscigenação racial no Brasil e que as classes intermédias são compostas de mestiços. Porém, é também inegável que as classes dominantes, nos seus estratos mais altos – digamos os 02% – são quase integralmente compostas de brancos, que se apropriam da maior parte das rendas nacionais.

Os números e conclusões apresentados pelo estudo da UFRJ indicam que os pretos e pardos têm qualidade de vida inferior aos brancos, sob qualquer aspecto objetivo considerado. Ora, isso não tem outra explicação senão um profundo, dissimulado e continuado racismo. Sim, porque a única explicação restante não convém aos racistas atualmente, excepto por um e outro grupo francamente defensor de superioridades raciais.

Os líderes da dominação, de qualquer delas, sabem que precisam esconder, primeiro a própria dominação, segundo suas causas, terceiro sua inércia. Precisam exercer o domínio por meio do que os norte-americanos chamam soft power, ou seja, mediante o engano, a confusão e o disfarce.

Trata-se de asseverar que existe a igualdade e de pô-la nas leis, formalmente. Trata-se de assegurar que as oportunidades são iguais, ainda que o sejam somente nos papéis escritos. Trata-se, enfim, de esconder que há uma tremenda inércia social e que isso é decisivo para que alguém esteja onde está.

Se alguém consegue perceber, ainda que discretamente, o papel da inércia social, logo o modelo lançara nuvens sobre esse pedacinho de compreensão e falará como se tudo se limitasse ao recebimento ou não de heranças. Pois o domínio implica também em fazer ele mesmo a pauta de discussões e delimitar como os assuntos serão abordados. Assim, ele conduz às conclusões que lhes convém, ou conduz à falta de conclusões, à confusão e a mais nuvens.