Um bárbaro dálmata do século IV a.C. traduziu a bíblia hebraica e os evangelhos canônicos para o latim. Fê-lo mesmo alfabetizado tardiamente em grego e em hebraico, o que é notável! A Vulgata, tradução dos textos hebraicos e dos textos gregos do Novo Testamento para o latim, deve-se a ele.

O homem fez de tudo e devia ter um senso de oportunidade muito apurado, pois foi de asceta do deserto a proto acadêmico e acompanhante e confessor de senhoras ricas piedosas. Viajou o mundo que a cristandade conhecia, ou seja, a bacia do mediterrâneo oriental, a Palestina, a Síria, a Lídia.

Pegado a livros e principalmente a livros sem autoria definida – o que não constituía qualquer problema – ele desenvolveria a técnica da crítica, que é uma forma de tradução ou, no mínimo, uma derivação desta. Estabeleceu regras para a fixação de autoria, a partir basicamente de conceitos de continência. São critérios de validade e canonicidade por autenticidade consigo mesmo.

Assim, por exemplo, se de vários livros atribuídos a um autor, um apresenta nível inferior, ele deve ser considerado fora da obra. Deve haver uma constante de nível e uma obra inferior às demais retirada do conjunto. A obra que contradiga a corrente ideológica do autor deve ser considerada não dele. Este é um critério de coerência a afastar tudo quanto inicialmente desdiga a linha maior do autor.

O estilo também deve ser homogênio e, assim, a obra que se afaste estilisticamente das restantes tampouco pode ser do mesmo autor. Por fim, lança um critério histórico – o único, talvez, a ter algum sentido – pelo que a obra que se refira a fatos e personagens posteriores ao autor não deve ser considerada dele.

Esse padrão, esses critérios, lançaram as bases da fixação de autoria e, mais que isso, de toda a crítica ocidental posterior. Para ele e na época, isso calhou muito bem, pois tratava com a formação de uma tradição que precisava autenticar-se e autorizar-se. Ele acresceu método, aquilo que autoriza mesmo que signifique nada ou quase nada, posto que sempre dogmático, como qualquer parametrização científica.

O texto sagrado pede autor certo e pede intérpretes, assim como o texto jurídico da tradição judaico-cristã. Se por um lado é aberto e pede intérpretes, por outro precisa fechar seus furos de autoria e estabelecer uma unidade que lhe confira autenticidade e historicidade, mesmo que seja para se afirmar revelado e não histórico.

A crítica gira em torno a isso desde sempre e é crítica de autor mais que de obras. Cuida da unidade da obra a partir de elementos que a própria obra fornece. Ela aponta o diferente que não deveria haver porque proveniente do mesmo autor. Ela percebe melhor da coerência que o próprio autor que tem uma obra glosada por diferente em nível, estilo ou ideologia da linha geral. A crítica é basicamente o fetiche da coerência segundo a definição externa ao autor.

O biografo de autor é uma figura de crítico que sabe escrever mais que cinco páginas e quer ser considerado também autor. Evidentemente, isso é tanto inútil, quanto presunçoso, na medida em que não for história pura e simples. A biografia de Napoleão será uma coisa, a de Stendhal outra. Qual o sentido da biografia dum autor, senão o de lhe retraduzir mais uma vez?

A obra sobre a obra e a obra sobre o autor são a obra de alguém sem obra. Ora, se autor e obra forem o mesmo, escreve-se história. Se o primeiro existe sem o segundo, escreve-se psicologia de uma pessoa que pode ter existido. Se a segunda existe sem o primeiro, escreve-se uma tradução.

Embora não seja o que me levou a escrever essas bobagens, recentemente houve algo que, agora, me vem ao pensamento. Um fulano muito importante escreveu um livro a que chamou: Fernando Pessoa – Uma quase autobiografia. É extraordinário! Conseguiu ser extraordinário mesmo num mundo com tanta gente e com tanta gente proveniente das terras narcísicas da capitania de Pernambuco.

Uma autobiografia é a história de si mesmo, escrita pelo que a viveu. Uma quase autobiografia é obra de quem é quase o autobiografado. Assim, o autor da quase autobiografia de Fernando Pessoa é quase Fernando Pessoa!

Até então, nunca tinha visto alguém dizer-se quase outra pessoa, embora já tenha escutado a afirmação da identidade total. Quase Fernando Pessoa é algo interessante, porque fica a dúvida se quase o escriturário metódico ou o autor tão aparentemente diverso em estilos de prosa e de versos.

A presunção em afirmar-se quase Fernando Pessoa não passa por ser este autor algo muito grande e inatingível por outrem; não passa por o quase ser impossível de ser quase o paradigma. Não é uma questão de valor do paradigma ou do quase. É que é difícil saber o que é outrem na integralidade, para poder saber que é quase ele.

Quase algo só se afirma por saber-se totalmente o que é o outro. Assim, sabendo-se a integralidade, pode-se saber as diferenças que fazem o quase. Mas, saber a totalidade é quase presunçoso…