Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Saramago morreu.

José Saramago, já velho.

Um homem sóbrio. Morre sobriamente, em casa, aos 87 anos.

Há vinte anos, deparei-me com dois livros dele, na casa de minha avó. Eram O evangelho segundo Jesus Cristo e A história do cerco de Lisboa. Não me produziram uma imensa sensação de descoberta literária. Alguma surpresa com a forma, alguma satisfação com a abordagem.

Pus-me a ler tudo quanto encontrasse de Saramago há pouco tempo. E gostava de iniciar a leitura de um depois de terminar a de outro livro. Sempre fica a parecer que o estilo cria alguma familiaridade e que os livros todos são um. E acredito que sejam.

Não consigo dizer de outra maneira, embora vá soar ingênuo. O homem parece que não se vendeu. É isso, não se vendeu; dizer que era coerente é simples, pouco.

Acho que seduzi-me pelos livros do Saramago pelos por quê. E não acho que sejam por quê existenciais, mas mais ao rés-do-chão.

Há um ano, mais ou menos, descíamos, Olívia e eu, da Lapa a São Bento. Podíamos tomar o metro, mas resolvemos caminhar. Boa decisão, pois breve voltaríamos e o pequeno deleite de caminhar tornaria a ser interditado. Chegamos aos Aliados e lá estava a Feira do Livro do Porto.

Andamos a ver uns livros e, pelas tantas, Olívia ouviu anunciar que às cinco e meia José Saramago estaria lá e autografaria livros. Ficou entusiasmada e eu disse que era melhor averiguar, que podia ter escutado mal. Quem escuta mal, como eu, sempre cogita essa possibilidade. Mas, tinha ouvido bem, Saramago estaria ali mesmo.

Formou-se uma fila que logo estaria imensa. Olívia comprou dois livros e ofereceu-me um: Manual de Pintura e Caligrafia. Agora mesmo fui apanhá-lo na estante e vi a data precisa, escrita por ele, assim: 2.VI.2009

À nossa frente havia uns jovens eufóricos. Eram estudantes e alguns eram brasileiros. Fosse o Saramago ou a Madonna quem eles iam ver em breve, acho que dava no mesmo. O velho escrevedor perceberia esse entusiasmo que não era de letras, mas de gente conhecida. Percebeu melhor ainda porque um dos rapazes fez alguma pergunta que não se referia a livros. Olívia deve lembrar que pergunta foi, mas eu não lembro, não escutei.

Lembro que Saramago reteve o rapaz e, com um ar de muito cansado, perguntou-lhe se já tinha lido algum livro seu! Pergunta gentil, cansada e sem precisar de resposta.

Chegou minha hora de entregar-lhe o livro para autografar. Um aperto de mãos, boa tarde, boa tarde, obrigado.

Continuarei a pintar o segundo quadro, mas sei que nunca o acabarei. A tentativa falhou, e não há melhor prova dessa derrota, ou falhanço, ou impossibilidade, do que a folha de papel em que começo a escrever: até um dia, cedo ou tarde, andarei do primeiro quadro para o segundo e depois virei a esta escrita, ou saltarei a etapa intermédia, ou interromperei uma palavra para ir pôs uma pincelada na tela do retrato que S. encomendou, ou naquele outro, paralelo, que S. não verá.

6 Comments

  1. Ana Angélica Ribeiro

    Andrei,

    Apenas tive o prazer de ler “Ensaio sobre a cegueira”. Adorei o livro, apesar de, confesso, não ter me adaptado muito bem ao estilo de escrita corrida do autor.
    Por sugestão de um amigo, analisei a estória com os olhos comunistas, regime este tão apaixonadamente defendido por Saramago. E, ao vislumbrar a cegueira dos personagens tendo como razão de ser o capitalismo, me pareceu ainda mais interessante as linhas daquela obra.
    Sem dúvida, perde um grande contador de estórias.

    Abraço!

  2. andrei barros correia

    Ele era espetacular, Ana Angélica. Nunca tive a impressão de ter lido algum livro ruim do Saramago.

  3. Olívia Gomes

    O mundo fica mais burro e mais subjetivo sem Saramago.

  4. Davi

    Você teve a grande sorte de percebe-lo pessolmente. A sua morte faz parte do curso natural das coisas, mas é uma perda incomensurável para a literatura.
    Já li diversos livros dele, gosto muito do ritmo e do estilo. Meu primeiro contato foi com o “Evangelho segundo Jesus Cristo” e tive a mesma impressão que você, Andrei. Mas, continuando a ler as outras obras, pude notar melhor a consistência e a clareza das opiniões dele. De fato, sua morte é digna de luto para o mundo.

  5. miguel

    Olá Andrei,
    Venho falar-te um pouco da morte de Saramago.
    Apenas soube da morte de Saramago na noite de sexta-feira, como deves saber morreu pelas 12h45m.
    A notícia da morte apanha-nos sempre desprevenidos, mas mais surpreendido fiquei por ninguém a ter comentado, referido, ao longo de todo o dia. Saramago morreu em tempo de Mundial!, e em Portugal a sua celebração terminou com uns 7-0 à Coreia do Norte.
    Como sabes andava um pouco zangado com ele, pela sua pressa em publicar, facto que eu entendia mal. Mais descontente fiquei quando me pus a ler “A Viagem do Elefante.”, não terminei a leitura porque o achei fraco e, definitivamente, julguei eu, não entendia a urgência da sua publicação.
    A sua morte trouxe-me uma sincera tristeza pelo homem que morrera e alguma reflexão.
    Saramago, não era um homem de justa medida, que se preocupasse em demasia com a beleza, com o ideal. Era um homem sóbrio, como referes muito bem, mas humilde e de causas.
    Afrontou, por isso, com veemencia os poderosos e usou-se a si e à sua escrita para combater, nunca se escondeu no que escrevia, em ser escritor.
    Saramago, escritor, ficou-me, desde sempre, no ” Conto da ilha desconhecida”; aquele que desconhecendo os mares, a arte de navegar e até o que era um barco, se fez marinheiro e só, apenas com a mulher que decidiu acompanhá-lo, se determinou a procurar a ilha desconhecida. Um pouco tardiamente, percebo que Saramago era aquele marinheiro. Procurou a ilha desconhecida até ao fim, de forma lúcida e corajosa, essa era a sua viagem; a sua escrita apenas a sua caravela.
    Ele é que estava certo, eu estava errado, e deszanguei-me.
    Um abraço meu caro amigo,
    miguel

    • andrei barros correia

      Prezado Miguel,

      Lembro-me da tua insatisfação com a ansiedade de publicar do Saramago. Ainda conversamos a respeito.

      Na ocasião, pensei que podias bem ter muita razão. O livro do Elefante fazia crer nisso, pois publicou-se precisamente quando ele estava bastante doente, ou convalescente, e não é de suas maiores obras.

      Curiosamente, a aceleração no ritmo do próprio Saramago, com a publicação a seguir de Caim, fez que mais do mesmo me pusesse em dúvida.

      Miguel, o homem morria e sabia disso. Parece-me que ansiou por publicar por buscar a lucidez – palavra que usaste e que é muito mais precisa que sobriedade.

      O homem morria e escrevia e publicava e não era para desculpar-se ou coisa semelhante. Era para mais por quês. Ou, como disseste, para marinhar ainda no desconhecido, lucidamente.

      O homem era um tremendo escritor. As lembranças de livros vão e vêm na minha cabeça. A jangada, os fulanos que ouviam a terra. A laje imensa de Sintra, o padre que voou com sopros humanos.

      O não-voto não previamente concertado. O homem era lúcido demais.

      Um forte abraço, meu caro.

      Andrei

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