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Saúde pública e o lugar-comum do problema de gestão.

Um resquício interessante de positivismo é o discurso que aponta os problemas de gestão como pontos centrais. Quase cento e sessenta anos depois do surgimento da ideologia que aceitava ser chamada assim, ela continua a servir de mote aos que chamam atenção para os detalhes e – agora – não querem ser classificados como ideológicos.

O pessoal que aponta os problemas de gestão pretende que não há problemas de outra categoria, ou seja, que tudo passa por administrar os recursos de forma ótima, por definir estratégias, por reduzir os custos unitários das utilidades produzidas e oferecidas.

O encanto que a ideologia tinha nos seus inícios é quase o mesmo que vem gerando hoje, embora não se oponha, presentemente, às escatologias. Ela própria, a ideologia positivista, tornou-se salvífica, o que significa que se transformou no que era para ser: uma religiosidade com traços de ciência.

Quando se enfatiza a gestão de alguma coisa desvia-se o olhar das escolhas que devem acontecer previamente. Sim, porque a gestão é, de certa forma, a negação da política ou a política a negar-se. Ou seja, quem fala em gerir deixa de falar em escolher.

Não estou a negar a possibilidade de ganhos de eficiência, sejam marginais, sejam grandes, que os processos e serviços possam ter. Mas, a dizer que é preciso antes escolher os serviços que se querem oferecer e gastar o necessário. Percebe-se que o discurso enfatizador da gestão também é, de certa forma, negador dos preços e profundamente religioso no que tem de promessa de êxito incondicionado.

O Brasil gasta menos de 04% de seu PIB com o Sistema Único de Saúde, o que é insuficiente para custeá-lo, excepto se se reduzirem as metas de universalização.Basta comparar o dispêndio brasileiro com os valores de outros países mantenedores de sistemas universais para observar a insuficiência de recursos destinados a saúde pública aqui.

Daí que os problemas evidentes de má gestão sejam colocados em primeiro plano, para que não se pense nas decisões de onde o estado deve gastar. O discurso só funciona se for aplicado isoladamente a tais e quais áreas, sem a interligação evidente que a política faz supor. Por exemplo, a decisão de gastar-se mais em saúde pública ou, antes, de gastar-se mais na remuneração dos rentistas não se aborda, nem se resolve a partir de modelos de gestão.

Aliás, a opção de pagar-se muito em renda do dinheiro pretende-se amparada em uma ciência oculta ou, melhor dizendo, em uma pseudo-ciência que oculta sua natureza real de predação misturada em modelos matemáticos. O problema destes últimos é que o modelado tem realidade própria e sempre de acordo à vontade prévia dos modeladores.

O modelo reproduz uma vontade; ele não antevê uma possibilidade do real. Todavia, tem que se afastar a todo custo dessa palavra vontade, porque ela representa e é representada pela palavra política. Ora, em política nada é impossível, inevitável ou obedece a sólidos limites prévios. O âmbito político tem a dinâmica do imprevisto e do incondicionado, tem uma abertura que não se apreende muito simplesmente pelos modelos.

Ele precisa então ser substituído pela gestão, essa forma de farisaísmo anacrônico, em que uma classe sacerdotal maneja processos indiscutíveis, de origens imperativas e finalidades desconhecidas. É interessante observar que, relativamente às finalidades, as coisas vão se esfumaçando mais e mais, quando são analisadas a partir da perspectiva de gestão, até que o fim confunda-se com os meios.

Esse discurso com ênfase na gestão é parente colateral imediato daquele que afirma não haver mais ideologias, não haver direita nem esquerda. São discursos que pretendem instalar a idéia da falta radical de opções, da inexistência de alternativas, ou seja, da política previamente condicionada e exercida pela classe sacerdotal merecedora de ratificação automática do povo distante.

Esse feixe ideológico que nunca aceita a marca ideológica é um subproduto curiosíssimo do liberalismo. Trata-se de um direitismo clerical, que não se confunde com aristocracia ou tecnocracia. A falta de identidade é sua marca, uma não-marca é seu emblema.

Ele é cool  pelo que apresenta de negativas reivindicadas como signos de sua modernidade: ele não é de esquerda, não é de direita, não é uma ideologia, não é uma ciência, não é uma ditadura, não é tampouco o que chamará de velha democracia, não é contra ninguém, não é coisa de políticos…

É fascinante que uma coisa assim tão religiosa, tão evidentemente teocrática, seja chique, hoje! Sim, hoje que a religiosidade que atendia pelo nome de socialismo soviético foi decretada superada, inviável, impossível, anti-natural e outras qualificações negativas mais.

Fascina, mas não pode surpreender, porque a face religiosa de alguma política e ideologia tem que opor-se a outra religiosidade, da mesma forma que os trens podem ir em sentidos diferentes, mas nunca fora dos trilhos.

Assim, não surpreende que a gestão seja o discurso do político que não quer fazer política e, portanto, não quer falar em opções. Ele quer partir de imperativos categóricos e discutir todas as lateralidades de algum processo em andamento; terá que evitar, a qualquer custo, que se pense em outros processos. E, como não poderia ser diferente, recorrerá à desonestidade intelectual.

Ele dirá que mais ou menos do mesmo é o diferente ou engendrará o diferente. Ele fará crer que pequenas diferenças quantitativas acarretam diferenças qualitativas, o que é falso, de falsidade conhecida pelos clérigos nas posições mais elevadas. Eles sabem, os graduados, que a mudança quantitativa somente é qualitativa quando é imensa nas grandezas.

Por essas coisas, é anátema algum sujeito dizer que se gasta pouco com saúde e muito com juros, por exemplo. Tal proposição foge ao modelo, sugere opções que não implicam a gestão, senão como instrumento posto no seu lugar de simples instrumento. Ela não aceita sua condição instrumental, porque quer uma condição de revelação.

2 Comments

  1. Severiano Miranda

    Por onde passaria então uma solução? Ou inicio de uma possível, sem quebrar completamente o modelo atual.. Não que a quebra do modelo não seja uma solução, mas não me parece possível em curto, médio ou longo prazo.

  2. Andrei Barros Correia

    Realmente, a ruptura com o modelo não está no horizonte, nem vai ser proposta, que as pessoas não querem rupturas, têm medo delas.

    No caso da saúde pública, acho que a solução é tornar a universalidade e a gratuidade materialmente existentes, porque só o são formalmente.

    Então, é o caso do governo decidir e de reinstituir um tributo como a CPMF para custear. Claro que pode ganhar aqui e acolá com melhoras de gestão, diminuição da roubalheira, mas isso é marginal.

    É a mesma coisa do sujeito que quer mais desempenho de um computador e fica a tentar espremer num twekzinho, tenta dar um overclock, desliga todos os aplicativos.

    Isso é até divertido, mas a solução é comprar um processador mais poderoso.

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