Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Shopping Manaíra, morte, espetáculo e escravidão.

Aconteceu o seguinte, conforme lê-se no sítio de notícias WSCOM: um homem de meia idade, pelo 50 anos, estava no Shopping Manaíra, em João Pessoa, na Paraíba. Começou a sentir-se mal e a gritar por ajuda, porque sentia fortes dores no peito. Uma mulher dispôs-se a ajudá-lo, levá-lo ao carro e daí ao hospital.

Nesse passo, chegaram os seguranças do tal shopping center, afastaram a mulher e arrastaram o homem para a calçada, deixando-o lá. O homem morreu na calçada da entrada do centro comercial, de enfarto fulminante, sem socorro.

Há e ainda continuarão as reações previsíveis, ocorridas dentro do modelo e que não o modificam, de indignação emocionada. O lugar-comum dessa indignação é insensibilidade. Será gritado e repetido à exaustão, inutilmente. Cessarão os gritos, esquecer-se-á o acontecido, até que outro escândalo volte a despertar a indignação e a ensejar queixas contra a insensibilidade.

Tudo será percebido como um fato isolado, escandaloso mas isolado. Passados os frêmitos iniciais e cessados os gritos de insensibilidade, passa-se a esperar o fato seguinte, a ser percebido da mesma e exata maneira, ou seja, como se não fossem sintomas de uma moléstia maior.

Ninguém deixará de frequentar esse templo de múltiplos altares, o shopping center Manaíra, nem qualquer outro. O problema está precisamente em que são templos, dedicados à religião do imediato, da abundância mercantil, da dominação avassaladora que os dominados não percebem.

Nessas engrenagens demoníacas, são curiosos os papéis de alguns escravos. Digo alguns porque todos o são, inclusive o morto, então convém apontar de qual deles se fala. Os seguranças do estabelecimento estão entre os escravos pior posicionados segundo uma escala que considere rendimentos apenas. Socialmente, sob uma perspectiva mais ampliada, é um papel que daria várias teses de investigação científica.

O segurança, mais especificamente no Brasil, faz parte de um aparato de contenção social e busca ser simpático com seus senhores, ao máximo. O máximo de simpatia ou de competência no trabalho corresponde às atitudes que julga serem as mais desejáveis pelo senhor.

Os senhores querem tranquilidade, querem os problemas afastados, querem aparência de tranquilidade, para que os sacrifícios possam ser oferecidos nos templos da abundância comprada a crédito. Querem segurança, ou a aparência dela, querem que o evento sujo, estranho, imprevisto, seja afastado para longe.

Os escravos ávidos de bem servir ao senhor serão sacrificados sem oportunidade de invocar em defesa suas competências e  sua lealdade. Se agissem sem competência e deslealmente, seriam sacrificados da mesma forma. Eis o que não se quer perceber: aqui há pouquíssima aleatoriedade, quem perde é sempre o mesmo lado.

A platéia de escravos outros aplaudirá o sacrifício de uns seus semelhantes e o espetáculo seguirá seu rumo.

8 Comments

  1. Reginaldo

    Omitir socorro já é um crime, proibi-lo, se enquadraria em que?

  2. André Raboni

    Andrei,

    Tomei a liberdade de reproduzir seu texto no Acerto. Tinha lido sobre o assunto. Ele é bizarro, mas a sua abordagem toca onde ninguém (que eu li) havia tocado.

    Muito bom.

    Grande abraço!

  3. Andrei Barros Correia

    André, o engraçado serão os comentários.

    Já leste a Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord? Caso não, permite-me sugerir enfaticamente. É dos poucos caras que saíram do modelo.

    Abraços

  4. André Raboni

    Não li, Andrei. Li comentários sobre o texto, depois que vc postou aqui n’A Poção aquele video, na sequência do texto sobre Berlusconi. Tenho um pdf. do livro, e estava justamente lendo algumas passagens agora. O prologo para a terceira edição francesa já mostra que é fantástico, o autor pela escrita certeira (“Não sou destes que se corrigem” – sobre não se fazer revisar seus textos em publicações posteriores), e o livro pelo tema/abordagem excepcionais.

    Mas vou lendo algumas passagens (estou dando uma olhada no capítulo II, sobre a mercadoria e o espetáculo), enquanto providencio uma edição impressa, que ler livros em computador ainda não me acostumei.

    Não sei ao certo, porque esse pdf. não ajuda. Mas o livro é escrito em aforismos… É isso, mesmo?

    Este, por exemplo, número 41, do 2º capítulo, é extremamente assertivo.

    “A dominação da mercadoria sobre a economia exerceu-se, antes de mais nada de uma maneira oculta. A mercadoria, enquanto base material da vida social, permaneceu desapercebida e incompreendida, como o parente que apesar de sua condição não é conhecido. Numa sociedade em que a mercadoria concreta permanece rara ou minoritária, a dominação aparente do dinheiro se apresenta como um emissário munido de plenos poderes que fala em nome de uma
    potência desconhecida. Com a revolução industrial, a divisão do trabalho e a produção maciça para o mercado mundial, a mercadoria aparece efetivamente como uma potência que vem realmente ocupar a vida social. É aí que se
    constitui a economia política como ciência dominante e como ciência da dominação.”

    Creio que isso já seja algum prenúncio d’alguma análise sobre a materialização da ideologia (consumista), que, me parece, virá ao longo do texto, e intutula o ultimo capítulo. Muito aguda a análise, porque a “maneira oculta” através da qual a mercadoria domina, possivelmente seja uma sintomática dos próprios engraçamentos que vc aponta nos comentários que virão, ou melhor, que já lá estão.

    Abs.

  5. Andrei Barros Correia

    André,

    Não é o livro todo em aforismos, embora seja grande parte. Alguns capítulos são compostos de grandes parágrafos.

    Algumas edições têm um Comentário sobre a sociedade do espetáculo, que é um texto do próprio Debord, de 1983, eu acho.

    É a melhor parte, segundo pareceu-me, e escrita quinze anos depois. Não é formatada em aforismos ou em parágrafos longos.

    Debord é um sujeito que rompeu. Inclusive, o Comentário significou uma grande acusação ao mitterandismo, ou ao socialismo de aparência que vigia.

    Rompeu lucidamente, sobriamente, claramente.

  6. Severiano Miranda

    Esse acontecimento me lembra esse outro:

    Las muertes que no importaron – http://www.bbc.co.uk/blogs/spanish/2008/07/las_muertes_que_no_importaron.html

    Morte em Torregaveta – http://diegoviana.opsblog.org/morte-em-torregaveta/

    Itália: Banhistas ignoram ciganas mortas – http://www.cmjornal.xl.pt/noticia.aspx?channelid=00000021-0000-0000-0000-000000000021&contentid=3A14AC4B-1D63-4F99-89E3-597E825FAA69

    Itália: banhistas indiferentes aos corpos de duas crianças ciganas no areal – http://www.publico.pt/Sociedade/italia-banhistas-indiferentes-aos-corpos-de-duas-criancas-ciganas-no-areal_1336082

    Resposta à xenofobia – http://www.cartacapital.com.br/internacional/resposta-a-xenofobia

    Não que sejam exatamente iguais, mas me lembra.. Acontece uma coisa engraçada aqui, ora, existe racismo por raça, cor, opção sexual.. O engraçado daqui, é que existe o racismo spy vs spy… =( Na impossibilidade de meu alvo ter a pele um pouco mais escura, apenas um pouco, afinal meu branco precisa de um bocado de OMO pra ficar mais branco, que pelo menos seja mais pobre, para que eu possa ser racista em paz.

    Não é o racismo europa – cigano, é o racismo brasil – brasil, com b minusculo.

  7. Andrei Barros Correia

    Rapaz, esse caso da Itália, da menina cigana morta na praia, é terrível.As pessoas fingiam que nada acontecia e acho que só o faziam bem porque acreditavam no papel.

    Ninguém está percebendo que se encontra em um palco, com um roteiro pré-definido. Ou seja, que não têm as liberdades que pensam ter e, mais complicado, que não têm a importância que pensam ter.

    São todos escravos que se oferecem aos senhores, em servidão voluntária. Têm uma dedicação tão grande ao projeto da servidão que ficam com raiva de quem o identifica.

    Querem ser escravos em paz!

  8. Olívia Gomes

    Também lembrei-me do caso da menina cigana na Itália. Lamentáveis.

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