Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Tag: Crise

Massas e retrocesso.

Não citarei Ortega y Gasset, Tarde, Debord e outros mais que me vêm à cabeça agora e a propósito dessa puerilidade que é a crença na impossibilidade de retrocessos. O que os autores disseram, evidentemente, é citado implicitamente; sempre é assim quando se escreve: citações se fazem a todo tempo.

As massas perdem-se no aprofundamento de suas massificações, o que não tem a ver, imediatamente, com suas situações financeiras, mas que terá sim, mais tarde ou cedo, implicações deste tipo. Quero fazer a advertência nunca demasiada de que massa não é sinônimo de pobre; é algo que tem com espírito de manada e com negação da história e da vida pública, basicamente.

Há também banqueiros, para recorrer ao exemplo máximo do pertencente ao máximo grupo dominante, que são massa, porque acreditam no que fazem, ou seja, no seu contributo à massificação, e não acreditam, por outro lado, que possam ser tragados nos processos enlouquecidos que sempre culminam com catarses de violência e desgregação.

O senso comum acha que o mundo é dado, que ele, como está aí, foi dado, surgido de um nada ou, no máximo, que é resultado da gestão de meia dúzia de fatores arranjados e rearranjados por alguns vistuosos que têm total controle da gestão. Acha e vive conforme acha, e grita aqui e acolá contra alguma bobagem o grito que lhe foi ensinado ou permitido.

Acreditar que tudo aí está porque assim deve ser é negar a história e, de certa forma, pensar a partir de um minúsculo sistema causal de curto alcance. Sisteminha que considera algumas combinações possíveis e serve-se de dados embaralhados e nebulosos de pouco tempo. É, diria, um quase não-pensar, pelo tanto de negativa de potencialidades que implica. Nem resulta em criatividade, por um lado, nem é uma postura mental ao menos conservadora.

O retrocesso sempre foi discutido. E, para que se o discuta, é preciso ter em mente alguma noção de avanço ou, pelo menos, aceitá-la. Porque, se avanços não existem, se é uma idéia inválida, a discussão perde todo o sentido. Paradoxalmente, a idéia de avanço é vastamente aceita e difundida ao tempo em que o retrocesso, ou é negado, ou simplesmente não cogitado.

Ora, se se aceita que a história avança nos seus aspectos sensíveis – melhora da qualidade de vida, aumento da disponibilidade de bens, aumento de paz social, redução de atritos sociais, redução de violências – é necessário admitir que o retrocesso é possível, e mais que está sempre à espreita. O avanço pressupõe qualquer base comparativa e as comparações podem evidenciar reduções qualitativas e quantitativas de algum dos termos comparados.

Admitir o avanço e o retrocesso significa reconhecer que a vida faz-se de atos sucessivos, encadeados não necessariamente segundo alguma norma de causalidade, mas encadeados e sucessivos. A vida coletiva, pelo menos, pode ser percebida assim, embora a vida pessoal, de si para si, puramente subjetiva, se essa dissociação absoluta for possível, atenda a outra lógica.

Ora, se os fatos da vida coletiva encadeiam-se e sucedem-se está claro que o processo pode andar em qualquer direção, mesmo que não ande para trás, evidentemente, no sentido de se desfazer e voltar no tempo. Não há retorno no tempo, por sedutora que a idéia possa ser, mas há retrocesso no estágio de união social dos grupos humanos, por perda de vitalidade e de referências históricas.

Hoje, especificamente, vive-se uma crise financeira na Europa que é um retrocesso evidente no processo de construção de sociedades ricas e relativamente pacíficas. Ele é percebido materialmente nos endividamentos, no aumento da criminalidade, na diminuição das liberdades, no terror de Estado, mas os sentidos captam os sintomas ao mesmo tempo em que a desrazão não percebe o fluxo do rio. A desrazão está boiando na superfície do rio, sem saber mesmo se é rio ou mar e se sopra vento…

Um dos aspectos mais evidentes da massificação é a negação do espaço público, ou seja, a negação da política. Tenho para mim que esse ponto específico foi objeto de ações deliberadas de certos grupos dominantes, que perceberam a boa acolhida que a idéia teria nas massas. Coaduna-se a negação da política com a crença no mundo dado e com a negação do retrocesso. A política tornou-se algo inútil e reservada aos mesmos profissionais de sempre porque, afinal, tudo é e será conforme tenha que ser.

Aliás, as coisas são e serão conforme uma classe de especialistas – iniciados seria possível, também – dispuser, em atenção a métodos de gestão previamente dados e condicionados. Ou seja, o pensamento massificado é dócil à noção de falta de opções, porque já aceitou a de inutilidade do âmbito político propriamente dito, aquele que age no espaço ideológico e histórico.

Assim, o retrocesso bate nas portas de a, b e c, que o sentem nitidamente mas não no percebem como coisa histórica porque foram apagados de qualquer possibilidade de pensar que há uma história. São pontos que não se relacionam senão para formar um pequeno plano. E sempre se relacionam os poucos pontos para formar vários pequenos planos, entrelaçados como em uma novela cujo enredo vai do nascer do dia ao pôs do sol.

O pensamento massificado não consegue, nem dissociar os pequenos planos superpostos do drama cotidiano, nem associar todos os pontos que sugerem um enorme plano. Fica-se pela metade, no rancor de conversa de café e no alívio de poder gritar um pouco e ver a novela à noite. O espetáculo da realidade leva o homem-massa espectador a saber-se platéia somente e a aspirar ao impossível protagonismo a partir de um grito desde a platéia.

É situação como se houvesse um consenso sobre a existência de um consenso. Uma imagem refletida em dois espelhos perfeitamente alinhados, em que qualquer desvio é impossível e um plano superpõe-se a outro. Está ruim porque está ruim… e pronto.

Penso, nesses termos, em algo do Brasil: a discussão da evidente invalidade da lei de auto-anistia passada pelo regime ditatorial, em 1979. Tecnicamente, a lei é de impossível coexistência com a constituição passada em 1988, mas os disfarces mantém-se. Historicamente e politicamente, porém, a coisa é mais dramática que juridicamente.

Nos âmbitos hitórico e político, a questão é quase totalmente obstada pelo pensamento massificado. Ele não somente levou o senso comum a perguntar-se para quê história – que ainda seria uma pergunta, embora já respondida – como o fez não pensar em história, nem mesmo sob qualquer ótica utilitarista de superfície. Ou seja, o mais comum é nem cogitar de história e o mais sofisticado que há é a cogitação a partir de superficialíssimo utilitarismo: para quê?

Aqui age a lógica do desassunto, a coisa simplesmente não se conhece. Não é que seja algo remoto e brumoso, é que não existe para a maioria. Essa mesma maioria, quando apresentada à questão e a alguns fatos, alterna surpresa e abordagem padronizada pela sua massificação. É quase totalmente impermeável o senso comum, que não se deixa seduzir por qualquer curiosidade.

Nesse caso, operam os elevados níveis de pobreza e de ignorância formal do Brasil. Quem viveu certa época, provavelmente fê-lo em luta diária para sobreviver e desprovido de quaisquer instrumentos de pensamento e de informações. Esse esquema é o do conservantismo baseado na escravidão tão profunda que nem se entrevê nalgum momento de distenção. Aqui, o mundo não passou na janela, a janela era um espelho e o mundo passou-se de dentro para dentro.

Acontece que se anuncia uma suave descompressão, que as maiorias tornam-se um pouco menos pobres e que se vive uma aparente democracia. Mas, isso vive-se com pessoas que há muito pouco eram mais insignificantes do que são hoje. Terão memória de alguma inferioridade material passada e só. Não há articulação dessa breve memória de um menos material recente com outros menos que a ela se relacionam.

O ambiente não é propício ao avanço que consiste precisamente em saber que o retrocesso é possível. E a que se vejam claramente os referenciais históricos a permitirem saber-se quando há avanço ou retrocesso. Não faz muito sentido para as massas que convenha conhecer a história e que convenha punir delitos para que eles não tornem a acontecer porque afinal vale a pena.

O discurso dominador reivindica cientificidade: o caso da eficiência e austeridade germânicas.

Acompanho a evolução da crise na Europa, cada vez mais temeroso das consequências políticas que se anunciam. As consequências econômicas e sociais, estas são previsíveis: empobrecimento e recuo geral das condições de vida. Não será fácil lidar com elas, pois os recuos de gentes que chegaram a níveis elevados de vida e gozam de padrões altos de proteção social é traumático.

A crise só encontrará uma solução, que passa pela instituição da federação, na Europa. Ou seja, solução, se houver, é política antes de ser financeira ou financista. Os alemães e franceses não deveriam temer mais a federação – e a consequente diluição do poder político legitimado – do que temem a falência de alguns Estados e o consequente final da moeda única.

Na verdade, a falência de alguns Estados será pior para a Alemanha que para os falidos, na medida em que as exportações tedescas destinam-se maioritariamente a países da Europa. Ora, se esses países quebram e voltam a suas moedas originais, ficam praticamente impedidos de comprarem produtos alemães e franceses, com custos de produção no que restar do euro, ou seja, em moeda forte. Sabe-se que um euro reduzido a moeda de alemães, franceses, holandeses e belgas seria ainda mais valorizado que atualmente.

Daí, percebe-se que a competitividade dos países norte-europeus só faz sentido internamente a um espaço que usa a mesma e valorizada moeda. Se esse espaço diminui e os vizinhos subitamente voltam a suas desvalorizadas moedas, os virtuosos norte-europeus vão reivindicar sua competitividade frente a quem? À China, à Índia, ao Brasil?

Os virtuosos povos do norte da Europa convidaram seus vizinhos de mais ao sul a entrarem na festa; estimularam suas ganas aquisitivas; disseram-lhes que podiam e deviam aceder ao mundo mágico das BMWs e Audis; ofertaram-lhes crédito vasto e barato; levaram-lhes à megalomania da construção civil. Eles endividaram-se, obviamente, e seus governos endividaram-se, na sequência, para salvar os credores…

Os virtuosos falam, hoje, contra os endividados, como se não os tivessem convidado ao endividamento. Falam como se se tratasse da coisa mais evidente, amparada em alguma ciência econômica muito certa, empírica e previsível. Na verdade, fazem um obsceno discurso moral travestido de ciência econômica.

Isso não é propriamente novo, mas é alarmante no que tem de aposta redobrada em discurso envelhecido. E assombra que a coisa venha resultando até bem, que o discurso venha funcionando no seu objetivo mais escondido e mais perigoso, que é promover o sentimento de culpa da vítima, por uma suposta forma de ser, invariável e inevitável.

Falo, está claro, do mito da lassidão dos povos do sul europeu, dos mediterrâneos, latinos, ibéricos, itálicos, helénicos. De uma espécie de lassidão misturada com acomodação e desregramento e irresponsabilidade, a que se oporiam a tenacidade, a sobriedade, a laboriosidade, a honradez dos nortistas. Isso, digamos sem palavras meias, é um mito que só se pode repetir impunemente porque a ignorância histórica anda elevada na Europa, como por toda parte.

A perversidade maior disso é que os povos retratados passam a identificar-se nos seus retratos e assumem uma má-consciência, um sentimento de culpa quase, de culpa de serem algo que lhes disseram que são. Aqui e alí há gente mais lúcida e outros mais revoltados que escapam a essa prisão mental, mas a maioria está a pensar em círculos e segundo o modelo da inferioridade que lhes impuseram. Poucos lembram que a história é deveras longa, que há vários ciclos, que os povos sobem e descem.

Pouquíssimos lembram – até porque pouquíssimos leram – que há dois mil anos, mais ou menos, significativa parte dos escravos em Roma era precisamente composta pelos ascendentes dos atuais laboriosos alemães.  Que o patriciado romano chamava à região do norte da atual Alemanha, Dinamarca, Países Baixos a cloaca do mundo. Enfim, que há pouco tempo, a norte do Danúbio e a leste do Reno era a barbárie…

Os bárbaros enriqueceram, organizaram-se, saquearam o mundo, desorganizaram a Ásia nesse seu saque, destruíram a África, souberam apropriar-se de uma herança jacente helénica e latina. Não hesitam em, ao mesmo tempo, clamar por essa herança grega e romana e afirmar sua própria germanicidade, que seria o sopro revitalizante e energia fresca e original a fecundar a cultura. Isso é uma tolice racista como muitas outras. Uma mistura de racismo e moralismo com tintas de ciência de almanaque, divulgada como instrumento de dominação.

É estratégia inteligente, como são todas aquelas que visam a dominar mediante o convencimento do dominado de que ele está em uma situação natural. O dominado fica dócil ao dominador quando se convence que não há domínio, propriamente, mas a resultante natural de circunstâncias que lhes são próprias e imutáveis.

Ora, se um povo inclina-se à preguiça e à irresponsabilidade ele está previamente condenado! Mas, pensemos calmamente, é de levar-se a sério uma assertiva desse tipo? Claro que é profundamente leviano e mesmo destituído de qualquer sentido dizer que um povo tem as características tais ou quais, que lhes impõem um destino certo, assim em termos morais e maniqueístas, porque isso simplesmente é falso e destituído de qualquer rigor.

Os laboriosos e responsáveis alemães – para voltar aos exemplos históricos – eram profundamente irresponsáveis, violentos e pouco dados ao trabalho organizado há vinte séculos. Sim, porque não se pode dizer que um povo a viver sem leis estáveis, sem estradas e sem cidades, sem tomar banho, sem uma gramática codificada, sem literatura fosse o protótipo do que eles hoje afirmam de si mesmos! Eles, hoje, são a prova de que as afirmações de características imutáveis de um povo não passam de falácia superficial. Eles mudaram em quase tudo e quase nada, excepto pelos banhos, é claro…

Uma sessão espiritista tumultuada, em Anus Mundi.

Por Sidarta

Lamento informar, de antemão, que alterei os nomes de alguns dos personagens dessa estória, que é real, pois penso que ainda não devem estar todos já mortos. Peço perdão às famílias dos personagens, se forem reconhecidos, mas não resisti em não contar esse fato histórico, ilustrador e divertido que ouvi de um conhecido anusmundense. Agradeço também à Sra. Gautama pela ajuda na escolha de alguns nomes para os personagens.

Era um mês de dezembro no fim dos anos 1960’s e fazia um calor de arrombar em Anus Mundi, interior do Piauí, em uma tarde de sábado… e Madame Otília (ex Severina Barracão, na juventude) estava se sentindo muito ocultista.

Ela tinha colocado um vestido branco longo, todo solto e esvoaçante, e a sala da sessão estava iluminada por velas, cada vela cuidadosamente enfiada em uma garrafa de cana. Havia três outras pessoas na sessão de hoje.

Dona Carminha, com um boné verde escuro do já insipiente movimento ambientalista; Seu Otacílio, fino e pálido, com olhos meio embaçados; e Maristela Pereira, de cabelo cortado recentemente em Teresina no estilo “Hoje, na Avenida”, no salão de dois jovens e promissores cabeleireiros, e que era convencida de que ela própria tinha profundidade ocultista ainda não explorada.

A fim de melhorar os aspectos ocultos de si mesma, Maristela tinha começado a usar e abusar de sombras verdes e de bijuterias “de prata legítima” adquiridas em uma tal de “feira do Paraguai”, em uma viagem de iniciação que fez a um grande centro esotérico em Brasília. Ela achava que era sexy e gostava também de ser vista como romântica, e até seria se perdesse uns trinta quilos.

Estava convencida de que era anoréxica porque cada vez que se olhava no espelho ela via uma pessoa gorda.  Como anoréxica, tinha lido que devia sempre comer um pouquinho mais.

“Vocês podem ficar de mãos dadas?” perguntou Madame Otília. “Devemos fazer silêncio. O mundo dos espíritos é muito sensível a vibrações.”

“Pergunta se Ronaldo já está por perto”, disse Dona Carminha.

“Espere um pouquinho, querida, fique tranqüila enquanto eu faça o contato.”

Madame Otília tinha deduzido, através de anos de experiência “nos mistérios” em muitas localidades do Piauí e do Maranhão, que dois minutos era o tempo certo para sentar-se em silêncio, esperando para o “mundo dos espíritos” fazer contato. Mais do que isso e os clientes ficavam indolentes, menos do que isso e eles sentiam que não estavam recebendo pelo que estavam pagando.

Na hora H, Madame Otília jogou a cabeça para trás com os olhos quase fechados.

“Ela agora vai, minha filha,” sussurrou Dona Carminha para Maristela Pereira. “Não fique assustada, ela apenas tá fazendo uma ponte para o outro lado. Seu guia espiritual chegará daqui há pouco”.

Madame Otília ficou meio puta da vida com a interrupção antes da hora e soltou um “Oooooooooh”. Em seguida, disse em uma voz alta: “Estás aí, meu guia?”

Esperou um pouco, para aumentar o suspense, e depois disse: “É você, Jerônimo?”

“Sou eu mesmo”, falou em nome de Jerônimo.

“Temos um novo membro hoje no círculo”, disse ela.

“É Maristela Pereira?” perguntou ela, como Jerônimo.

Ela ouvia no rádio as aventuras de Jerônimo, o herói do sertão, e gostou do nome para adotar para o seu guia espiritual.

“Oh”, guinchou Maristela. “Prazer em conhecer”.

“Ronaldo tá aí Jerônimo?” foi logo perguntando Dona Carminha.

Madame Otília, a ponto de perder a paciência, disse: “Tem um magote de almas perdidas aqui na porta da minha casa, talvez Ronaldo esteja no meio delas”.

Ela tinha aprendido que nunca deveria trazer Ronaldo no começo da sessão; se trouxesse Dona Carminha ia ocupar o resto da sessão dizendo a Ronaldo tudo o que tinha acontecido em Anus Mundi desde o seu último bate-papo (“… Ronaldo, você se lembra de Lurdinha, filha de Seu Toinho, virou puta e agora só quer ser chamada de Shirley; e Rosinha, filha de Seu Nonô, assumiu de uma vez e foi morar lá prás bandas de São Luis com uma mulher rica de uma família de políticos com um nome complicado”.

Um clarão de um relâmpago, seguido quase imediatamente de um estrondo de trovão fez Madame Otília se sentir bastante importante, como se ela tivesse feito isso sozinha. Foi ainda melhor do que as velas na “criação do clima”.

“Agora”, disse Madame Otília em sua própria voz, “Jerônimo gostaria de saber se existe aqui alguém chamado de Otacílio”?

Os olhos embaçados de Seu Otacílio brilharam. “É, é o meu nome”, disse ele.

“Certo, tem alguém aqui que quer falar com você”.

Seu Otacílio tava vindo às sessões fazia um mês e Madame Otília ainda não tinha conseguido imaginar uma mensagem particular para ele. Sua hora tinha chegado. “Você conhece alguém chamado de, hum, João?”

“Não”, disse Seu Otacílio.

“Bem, há alguma interferência celeste aqui. O nome pode ser José, ou Luis, ou Eraldo”.

“Eu me lembro de um José do tempo que eu tava no seminário,” disse Seu Otacílio.

“Sim, ele tá dizendo que foi do seminário”, disse Madame Otília.

“Mas eu encontrei ele na semana passada na feira de Picos e ele não parecia estar doente,” disse Seu Otacílio, um pouco perplexo.

“Ele tá dizendo prá não se preocupar, e que tá feliz lá em cima,” falou Madame Otília, que já tinha entendido que era sempre melhor dar a seus clientes boas notícias.

“Diz a Ronaldo que eu tenho umas novidades para contar a ele”, falou de novo Dona Carminha.

Aconteceu que, logo em seguida, algo veio mesmo do além e entrou na cabeça de Madame Otília.

“Sprechen sie Deutsch?”, disse “ele”, usando a boca da Madame Otília.

“Parlez-vous français?”

“Do you speak English?”

“É você, Ronaldo? “, perguntou Dona Carminha.

A resposta, quando chegou, foi bastante irritada.

“Não, de jeito nenhum. Uma pergunta tão besta como essa pode apenas ser feita em um país de ignorantes e desesperados, aliás, tenho visto muito isso durante as últimas horas. Minha Senhora, eu não sou Ronaldo”.

“Bem, eu quero falar com Ronaldo,” disse Dona Carminha, um pouco tensa. “Ele é baixinho e careca em cima da cabeça. Você pode chamá-lo, por favor?”

Houve uma pausa.

“Na verdade parece haver pairando por aqui um espírito com a sua descrição. Vou chamá-lo, mas você deve falar rápido. Eu estou tentando evitar a invasão dos Estados Unidos pela União Soviética”.

Dona Carminha e Seu Otacílio olharam um para o outro. Nada disso já tinha acontecido em sessões anteriores.

Maristela Pereira sentiu-se imediatamente como uma participante da ação dos espíritos para evitar uma guerra nuclear. Isso era muito mais do que ela esperava e começou logo a imaginar que Madame Otília fosse começar a manifestar o seu ectoplasma.

“Oi Carminha”, disse Madame Otília em outra voz que soou exatamente como a voz de Ronaldo. Em ocasiões anteriores, Ronaldo falava como Madame Otília.

“Ronaldo, é você?”

“Sim, Carminha”

“Certo. Agora eu tenho umas coisas para lhe contar. Para começar, eu fui ao casamento de Betinha sábado passado, aquela galega sarará que é mais velha do que Ronaldinho..”

“Porra Carminha, você nunca me deixou falar enquanto eu tava vivo. Agora que tou morto eu sei dessas coisas todas e vou lhe dar um recado: tou de saco cheio com essa sua chateação”.

Anteriormente, quando Ronaldo tinha se manifestado, ele dizia que estava feliz no além e que morava em uma casa parecida com uma pousada celestial. Agora ele falou irritado como o velho Ronaldo.

“Ronaldo, lembre-se de que você é doente do coração”.

“Eu não tenho mais coração, eu já tou morto. Cala a boca”, e o espírito de Ronaldo “cortou o papo” e foi embora.

“Você deve é estar morando com alguma rapariga nessa sua tal de pousada celestial. Tá pensando que eu não vou me virar por aqui também?”, ainda disse Dona Carminha.

“Bem, agora agradeço muito, senhoras e senhor, infelizmente estão muito ocupados lá em cima e cortaram a ligação”, disse Madame Otília, completamente baratinada com o que tinha acontecido.

Foi aí que Dona Carminha arrematou: “Severina Barracão, eu lhe conheço, você ainda tá de conluio com Ronaldo, pensa que eu não sei das idas dele prá sua pousada na beira da rodagem antes de você mudar de negócio?”

Seu Otacílio, um sujeito calado e percebedor, procurou em seguida um centro espírita sério e acreditado para tirar as suas dúvidas existenciais, e depois contou o acontecido na casa de Madame Otília ao avô de um conhecido meu de Anus Mundi, que recentemente me repassou as informações que tentei relatar quase sem botar nem tirar.

Soberania hipoteca-se? Ou, poderia o empréstimo vir de outro lugar?

Antes da crise financeira de 2008, Portugal tinha um défice público inferior ao limite da UE, que é de 03%. Superou-o uma e outra vez, assim como sucedeu com a Alemanha e com a França. Pecadilhos comuns, enfim.

Antes da crise financeira de 2008, o risco de Portugal era considerado menor que o da Itália e um pouco maior que os da Alemanha e França. Hoje, esse risco considera-se altíssimo e faz o país comprar dinheiro a bancos para pagar a bancos a 08% ao ano, patamar estratosférico de remuneração do capital.

Hoje, instalados todos os efeitos da crise financeira – para que não concorreram despesas públicas, nem programas sociais – Portugal tem um défice público à volta de 09 a 10% e uma dívida pública que representa 83% do PIB. São números elevados, mas há coisas muito piores na Europa, bastando lembrarmos-nos da Itália.

Ninguém quer chamar as coisas por seus nomes adequados e parece que não o farão nem mesmo quando os nomes não importarem mais. As dívidas que põem tudo em risco são as privadas, não as públicas. E o euro, superada a euforia do enriquecimento rápido com dinheiro emprestado, é uma trava, não uma solução. Bruxelas é a sede de um grande banco 60% alemão e 40% francês.

O parque de diversões ensolarado de alemães e ingleses não gera receitas suficientes para o padrão de consumo que esses mesmos turistas fizeram crer possível. E, a essas alturas, dá-lo em garantia só vai acarretar uma mudança: as faturas sairão com mais consoantes que vogais.

Se, juntamente com a entrega total da soberania a Bruxelas viessem as maiores plantas industriais da Volkswagen, da Siemens, da Peugeot-Citröen e da Alstom, talvez as coisas até andassem bem. Sem elas, todavia, as coisas vão andar mal, porque há doenças que evoluem melhor sem remédios que com remédios errados.

Estava, há pouco, lendo sobre as respostas e comentários que os irlandeses fizeram a um artigo do economista Kevin O´Rourke. Uma delas constitui uma jóia de serenidade em palavras vulgares. O comentarista anônimo sugeria, entre outras coisas, que seria muito mais eficaz subornar as agências de classificação de riscos que fazer um orçamento apropriado sob a ótica da austeridade.

Claro que ele está certo e claro que será considerado louco ou ignorante, mas está certo. Já que se trata de uma lógica de casino, é muito melhor comprar a opinião dos senhores que dizem o que é bom ou ruim, seguro ou arriscado.

Já que estou a divagar, que mencionei um comentário que será tido pelos sábios como loucura ou estupidez, acrescentarei um meu, sem receios de que seja tido também por loucura ou estupidez: e que tal se a Petrobrás comprasse a dívida portuguesa, sem pedir em troca o parque de diversões algarvio, nem que as faturas sejam grafadas com tantas consoantes?