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Moralismo, a condição da pendularidade.

A regra do jogo está dada há mais de dois mil anos; o neo-platonismo do cristianismo nascente consolidou-a com o matrimônio de helenismo tardio mistificante e judaísmo. Essa é nossa condicionante mais ampla e, dentro dela, o moralismo a mais presente.

A perplexidade de muitos com o golpe de Estado acontecido no Brasil, a vitimar a democracia, a antecipar o perecimento da soberania, do patrimônio nacional e dos direitos sociais tem ensejado análises variadas. Claro que análises a partir da perplexidade ou surpresa provém do que se pode chamar campo esquerdista.

Algo é comum à maioria destas análises: a afirmação de erros do PT – partido alvo do golpismo de inspiração externa – e da consequente necessidade de realizar mea culpa. Ora, a presença constante destes dois elementos revela que as análises não percebem o modelo maior em que tudo está inserido e são impregnadas de moralismo.

A questão do cometimento de erros é de uma banalidade imensa e os analistas parecem esquecer-se que o erro, além de sempre presente nos processos históricos e políticos, é algo que individualmente dilui-se a ponto de apagar-se. O erro, como opção equivocada, é algo muito micro no contexto geral. O processo, visto de longe, já trás os erros, na medida em que traz suas condições prévias.

A conquista do poder e a tentativa de sua manutenção operando-se dentro das balizas discursivas da normalidade aceite traz o risco da pendularidade. Cedo ou tarde, a mesma base discursiva usada para alcançar o poder será usada para a derrubada do primeiro grupo. Ora, no caso específico, o PT serviu-se de discurso moralizante, acusando a cleptocracia que ele veio a apear temporariamente.

Foi deposto o governo a partir de uma situação de histeria generalizada criada pela mesma matriz discursiva moralizante. Pouco importam as diferenças qualitativas e quantitativas entre os dois grupos, ou seja, que um deles não tenha praticado desvios ou os tenha praticado em menores níveis. Um dos grupos dispõe da imprensa e, portanto, a verdade dele constrói-se como se quiser.

Mas, a política como campeonato de moral é um sistema que traz ínsitas as condições da pendularidade e assim os golpes nada têm de estranhos, mesmo quando vestem poucos disfarces. Eles ocorrerão sempre que a conquista e a manutenção do poder fundar-se na lógica do campeonato de ladroagem. A política assim baseada fragiliza-se e dá as condições para as ruturas periódicas.

Há uma diferença de oportunidades, porém. Aquilo que se chamam esquerdas – nacionalistas acho melhor – leva muito tempo a fermentar o caldo da narrativa acusatória moralista contra os grupos políticos que servem majoritariamente aos interesses do grande capital interno e externo. Ela não dispõe da grande imprensa, como é óbvio, e por isso seus períodos no poder são fugazes.

Depois de depostos governos nacionalistas, viceja o discurso do mea culpa e a piedosa assunção de erros. Isso, como é feito dentro do modelo moralizante, sem muita inteligência e sem nenhuma sinceridade, portanto, é uma inutilidade, tanto tática, como estratégica.

Mas, as personagens sentem-se reduzidas sem erros e sem pedidos de desculpas, porque o homem prefere dizer-se pecador a reconhecer-se mera engrenagem histórica; prefere o protagonismo, mesmo que seja na afirmação do cometimento de erros que nem compreende bem, a dizer que os erros são nada mais que consequências necessárias de causas previsíveis. É óbvio que pautar tudo pelo moralismo é andar numa linha de sucessivas quedas.

Os poderes longamente mantidos nunca se apoiaram no moralismo. Apoiaram-se na conquista, nas forças armadas, no domínio das corporações burocráticas estatais e no domínio da imprensa. A política consiste em escolhas que devem ser impostas por um grupo a outro e na exposição de quais benefícios resultarão destas escolhas e para quem; ela não é, enfim, uma disputa de probidade ou de moralismo.

A probidade dos gestores públicos é, de forma geral, em perspectiva histórica, um problema menor. Sempre houve e sempre haverá que se corrompa e quem desvie dinheiros públicos e isso obedece a um padrão relativamente estável. No caso de gestores públicos, a raiz do problema está no financiamento de campanhas eleitorais e na promiscuidade público privada: onde houver dinheiro e contratos, haverá subornos.

É previsível que os nacionalistas – esquerda, se se preferir – tentarão reerguer-se atuando no mesmo modelo, o que significa que, sem dispor dos construtores de narrativas – imprensa e corporações judiciais – isso demorará muito.

O assalto será rápido e feroz.

Os patrocinadores externos do golpe de Estado no Brasil querem receber sua parte primeiro e o mais rápido possível, afinal foram eles que proveram as condições materiais necessárias ao sucesso da empreitada. Os deuses têm pressa, além de sede, claro. O exemplo argentino não permite dúvidas ingênuas ou pseudo-ingênuas sobre a velocidade e a ferocidade destes processos atualmente.

A recolonização é fundamental para eles, pois suas situações econômicas e de poder geopolítico degradam-se rapidamente. Este golpe lhes trará um precioso reforço à tentativa de manutenção da situação assimétrica historicamente pouco variável.

Acontece que os agentes internos do golpe, tanto os diretamente atuantes, que são as corporações política, jurídica e mediática, quanto o público em geral, formam um grupo demasiado heterogêneo. Haverá, como é intuitivo, uma ordem de precedência no recebimento das recompensas pela missão e para alguns o pagamento não virá em dinheiro, pois é previsível que ele escasseie, tanto por efeito de contração econômica, quanto por concentração na apropriação.

Além de um grupo compacto que visa apenas a dinheiro e faz a interlocução direta com os patrocinadores externos, há outros grupos que dão necessário apoio à empreitada golpista e esperam receber suas partes. Aí que se começa a perceber o imenso problema que haverá com a desagregação política, econômica e social que se anuncia.

Uma parte significativa dos agentes golpistas da classe política e das corporações públicas privilegiadas não tem interesse que o país acabe-se de um dia para outro. Eles precisam que alguma inércia mantenha-se, porque o jogo político do controle do Estado dá-lhes vida e sustento material. Para esses, a guerra do fim do mundo não interessa; para esses, as eleições de 2018 ocorrerão e eles precisam de êxito nelas, para manter-se nas várias camadas do poder político institucional.

As propostas – escritas e faladas – do grupo próximo ao homem que assumirá a presidência da República brevemente, porém, não permitem ilusões. O programa deles é brutalmente regressivo e implicará rápido reempobrecimento de quem viu sua pobreza reduzir-se um pouco de doze anos para cá. Essa gente talvez não seja totalmente iludida pela imprensa mainstream à medida que vê, tangivelmente, as coisas piorarem.

Uma parte substancial do apoio ao golpe de Estado vem de grupos calcados no conservadorismo de costumes, em grande parte evangélicos. Esses grupos são majoritariamente de extração social pequeno médio classista e tiveram suas condições materiais sensivelmente melhoradas nos últimos anos, mesmo que a narrativa conservadora de costumes os conduza a crer na tese do patamar obtido não ser passível de regresso.

O regresso, todavia, ocorrerá, porque o projeto é concentrador de riquezas. Inicialmente, esses grupos conservadores estarão bem pagos e sentindo-se no exercício do poder com medidas de retrocesso em direitos de cidadania, civis e sociais. Dois anseios básicos dos conservadores serão atendidos: os que giram em torno às tolices da homofobia e da vontade de andar armado.

Porém, o prazer de poder discriminar impunemente, de insultar o diferente impunemente, de o agredir fisicamente, de dizer que o pobre o é porque quer e de andar com revólver na cintura, mesmo intenso e poderoso nas almas, não será hábil a comprar televisões de leds nem automóveis novos… Não bastará a sedução das pequenas almas com esses agrados por meio de regressos bárbaros.

Não será possível cooptar esses grupos por muito tempo apenas com a satisfação dos seus preconceitos de costumes, de nítida matriz religiosa. Ou seja, haverá a reivindicação da recompensa material, também, o que torna a equação difícil, porque esse grupo fortaleceu-se nas políticas redistributivas que agora ajuda a por abaixo. E, como já dito, o dinheiro tende a escassear e a vontade de aumentar a concentração na sua apropriação a aumentar.

O que se anuncia de política econômica, pelos golpistas, permite antever que se entrará numa brutal recessão, porque eles farão o clássico tratamento quimioterápico do moribundo, uma genialidade que tem resultado previsível. Reduzir o poder de compra dos que têm maior propensão marginal ao consumo aprofundará a recessão. Neste cenário, muitos apoiadores do golpe ficarão sem receber em algo mais tangível que abertura para suas inclinações mais fascistas, ou seja, em algo que não é dinheiro.

Os agentes políticos, principalmente os de níveis intermédios, não têm interesse nessa regressividade brutal, porque chega-se a um ponto em que as mentiras da imprensa não impedem o sujeito de perceber que está a piorar. E isso terá efeitos na forma em que votará, o que gera para o político riscos altos. O político de nível intermédio – que não conta com o financiamento amplíssimo dos reais donos do poder e a blindagem incondicional da imprensa – fica em situação delicada. Ele tem de cumprir a missão golpista e gostaria que a degradação não fosse tal a ponto de afastar os eleitores.

Será difícil encontrar soluções de compromisso nesse projeto golpista do corte rápido, da rapinagem rapidíssima e do subsequente caos. Será difícil evitar a desagregação das forças golpistas e quase impossível prever que rumo as coisas tomarão neste país riquíssimo tratado como se fosse uma micro república…

Nesse estado de coisas, tentar alguma conciliação será ocioso. Tentar a solução da enganação, a partir dos disponíveis serviços da imprensa mainstream poderá ser acreditar demais no poder da mentira. Haverá uma saída.

Os gestores do regime golpista a instalar-se usarão da eliminação de direitos fundamentais mais que o inicialmente necessário para divertir os anseios retrógrados de seus apoiadores pequeno burgueses. Mais que permitir a livre expansão da homofobia, a livre expansão do ódio por políticas públicas inclusivas de minorias, o regime terá de se servir instrumentalmente da eliminação de direitos essenciais.

O regime, para governar, terá de suprimir a livre comunicação, terá de suprimir direitos básicos de liberdade de expressão. No limite, terá de partir para a repressão física, por meios militarizados, com o judicial a dar roupagem jurídica à repressão.

Se isso pode ser exitoso a estas alturas, em um país de 200 milhões de pessoas, não sei.

Venceréis, pero no convenceréis.

Em 12 de outubro de 1936 dava-se a Festa da Raça, na Universidade de Salamanca, com a presença, entre vários outros, do Reitor Miguel de Unamuno, do Bispo de Salamanca Plá y Daniel, da senhora Franco e do general Millán Astray.

Unamuno, convém aponta-lo, havia apoiado a invasão da República pelas tropas africanas do general Francisco Franco. E o novo regime nazista já se tinha consolidado por ocasião desta celebração da festa da raça na Universidade de Salamanca.

Astray ataca violentamente a Catalunha e o País Vasco nesta ocasião: “… cánceres en el cuerpo de la nación. El fascismo, que es el sanador de España, sabrá cómo exterminarlas, cortando en la carne viva, como un decidido cirujano libre de falsos sentimentalismos.” Depois do ataque racista vil, proclamou e deu vivas à morte, o que era seu característico.

Miguel de Unamuno era vasco; o Bispo Plá y Daniel era catalão. E ambos tinham sido favoráveis à derrubada da República pelas tropas nazistas de Franco, que era galego! Do ponto de vista estritamente racional, o ataque de Astray a catalães e vascos era, além de uma imensa e desnecessárias descortesia, uma estupidez.

Unamuno reagiu, mesmo a saber os riscos implicados. E reagiu tão elegantemente quanto firmemente: “Dejaré de lado la ofensa personal que supone su repentina explosión contra vascos y catalanes. Yo mismo, como sabéis, nací en Bilbao. El obispo, lo quiera o no, es catalán, nacido en Barcelona.”

Dejaré de lado la ofensa personal! É extraordinário. A seguir, disse o principal, que não ficaria calado depois de ouvir o necrófilo e insensato grito “Viva a Morte!” e disse que o general Astray era um inválido de guerra e que: “Me atormenta el pensar que el general Millán Astray pudiera dictar las normas de la psicología de la masa. Un mutilado que carezca de la grandeza espiritual de Cervantes, es de esperar que encuentre un terrible alivio viendo cómo se multiplican los mutilados a su alrededor.”

Unamuno morreu, provavelmente de desgosto, pouco após o incidente. Após sua refinada objeção a Astray, este proclamou o célebre abaixo a inteligência, viva a morte. Fez-se confusão, Unamuno ainda disse que venceriam porque tinham força bruta, mas não convencerão. Foi, ao final da cerimônia que se tinha tornado confusão, protegido pela senhora Franco, mas sofreu prisão domiciliar. O general Astray venceu, como se sabe, e venceu por décadas.

As últimas palavras de Unamuno nesta ocasião, referentes à não possuírem os nazistas razão e direito na luta – mas apenas força bruta – inserem-se na grande corrente do racionalismo de origem grega, cantado com beleza no teatro trágico. Unamuno diz a Astray o que Sófocles fez Antígona dizer ao tio dela a propósito da sepultura a ser dada a Polinices.

Este e outros episódios – os acontecidos e os ainda não consumados – provam que a razão e o direito não são condições necessárias ou mesmo eficazes para a vitória. Isto, com relação a vitórias bélicas, pode soar muito evidente; todavia, deveria passar a soar, senão evidente, bastante plausível, também para vitórias políticas.

A força bruta é mais intensa que as outras que contendem no palco político e social e ela não consiste somente na força física. A força bruta intelectual – aquela que provém das mentes mais vazias – é bastante apta a ditar as normas da psicologia das massas. Essa aptidão provém dela ser muito mais naturalizante que humanizadora, e propor coisas muito naturais: como matar, segregar, torturar…

A força bruta intelectual criou ambiente propício a um golpe de Estado no Brasil; ele está em curso. De tão urgente para os interesses saqueadores externos, abriu-se a estrebaria e soltaram-se dois cavalos a correrem paralelamente. O que chegar primeiro entrega o serviço e o único compromisso mútuo dos cavalos é não se atrapalharem um ao outro. O que for mais rápido atende aos interesses entreguistas: congresso ou judiciário.

Para obter apoio nas classes intermédias, a psicologia de massas à Millán Astray foi posta em difusão e estimulada pela imprensa. Este, a par com os destruidores efeitos econômicos e sociais do golpe, será o maior preço a ser pago depois. O fascismo histério e profundamente ignorante foi instilado nas camadas sociais que representam o terreno mais fértil para este tipo de pensamento rasteiro e conduzido de fora para dentro.

Mesmo que se impeça ou que se retome o poder político e se restabeleça o Estado de Direito após o golpe, será dificílimo desfazer os efeitos destruidores desta psicologia de massas fascista ditada pela imprensa para os estratos medianos e muito bem assimilada por eles.

A indiferença pode ser a pior tática oportunista.

É péssimo escrever com advertências precedentes, mas é necessário em muitos casos. A indiferença real – a que aceita todas as consequências e não investe contra elas nem com frustrações mal dissimuladas – existe, mesmo rara. Precisamente por sua raridade, chamam atenção as manifestações da indiferença não de todo indiferente.

Pode ser uma manifestação de cansaço reativa, e aí tem-se a contradição aparente da indiferença ativa, aquela que se afirma. Nesta há bastante autenticidade, no que ela tem de pedido de paz: é reativa, mas não provocativa. Enfim, seria tolo achar que é impossível alguém não gostar de política realmente.

Todavia, na maioria das vezes, nada há mais insincero que a indiferença política. E seus dois móveis mais evidentes são o oportunismo e o medo. Se esta indiferença reveste aspectos táticos, é certo que seu contrário não é o destemor caricato do que se dispõe ao conflito inútil e potencialmente danoso.

Sobre a aparente objeção acima mencionada convém dizer que sempre será lançada e assemelha-se àquela do privilegiado que a privilégios se opõe, o que seria contraditório; uma objeção que revela o mau caráter de quem a lança. Quanto a esta última, basta lembrar que não é reduzindo-se à escravidão que se luta eficazmente contra a servidão. Não é preciso ser pobre para opor-se a pobreza, enfim, nem é eficaz meio.

A pseudo-indiferença pode, entretanto, ser uma tática eficaz, como forma adjacente a uma linha de ação clara. Assim, ela também é bastante clara; é uma indiferença aparente que revela opções muito claras. Esta manifestação – de que o apolítico é exemplo hoje a ser lembrado – serve a propósitos específicos e será recompensada. Ela jogo no campo da narrativa do razoável que se oferece como conciliador: a proposta de parlamentarismo é, hoje, exemplo desta forma oportunista.

Porém, há uma variante que eu diria híbrida: a pseudo-indiferença que não funciona claramente como linha auxiliar de alguma posição, dando-lhe a válvula de escape da narrativa do razoável, mas que tem muito de ingenuidade como tática a serviço de um oportunismo difuso. Este oportunismo é animado por uma aspiração individual difícil de articular-se aos movimentos de grupo; é algo muito narcísico, enfim.

Esta variação tende a ser ineficaz em momentos pré e pós traumáticos em política, ou, pelo menos, a ser pouco eficaz em termos de recompensas, sejam elas pecuniárias, em proteção contra as violências advindas da loucura reinante, ou em efêmera glória. E a raiz desta ineficácia na obtenção de grandes recompensas encontra-se no que Maquiavel já dissera há muito sobre ficar-se declaradamente contra ninguém e a favor de ninguém.

O caráter narcísico da postura é fortíssimo e revela-se muito pelo que o indiferente oportunista quer-se de árbitro da realidade, segundo critérios que podem ser quaisquer, desde que sejam aparentemente originais. É a boa consciência da imparcialidade aparente, o bem estar psíquico da realização científica que seria o grau zero da axiologia.

O indiferente aparente não é estúpido; é autorreferente a um ponto elevadíssimo. Por não ser estúpido, sua indiferença é disfarçada em posição mediana, razoabilidade e imparcialidade, tudo que não existe e cuja inexistência é mais evidente em momentos de crises. Fosse estúpido e menos narcisista e menos ansioso pela originalidade, ofereceria algo mais apreciado por qualquer dos lados e teria a recompensa que a história prova serem merecedores os medíocres razoáveis.

O golpe será no congresso; seu líder é José Serra.

Dos líderes de oposição aos governos nacionalistas recentes o mais capaz é José Serra. Não porque ele seja viável eleitoralmente em nível nacional, mas porque é muito laborioso, tem interlocução direta com os interesses externos e com os chefes da imprensa mainstream brasileira. Ele é o político mais maquiavélico que se viu nos últimos quarenta anos, o que é um elogio.

É óbvia a articulação mediática-judicial para dar as condições do golpe de Estado que deporá a Presidenta Dilma. Por cálculo, percebeu-se o risco da deposição puramente judicial num colegiado. Tanto pode haver minorias contrárias, quanto pode haver conflitos e constrangimentos decorrentes do expurgo baseado em nada.

Soma-se outro inconveniente à deposição por meio de tribunal: quem assume depois do golpe. Nessa modalidade, as hipóteses são muitas, a dependerem do momento e, o pior, a dependerem muitas vezes de nada suficientemente previsível. Hoje, a imprensa conseguiu conduzir as camadas médias a tal loucura, que eleições podem ser indesejáveis, na medida em que, por exemplo, ex-militar nazista do Rio de Janeiro é viável, ambientalista criacionista do Acre é viável.

No início do planejamento golpista, adotou-se uma estratégia muito sagaz, segundo a qual todas as linhas se tentariam e seriam auxiliares umas das outras. Aproximado o desfecho, a coisa seguiria a que se tivesse mostrado mais viável e menos custosa.

O conúbio judicial-mediático foi essencial, mas não como o algoz que empunhará o machado a decapitar a Presidenta. A famosa operação lava-jato, conduzida com tantas violações a garantias constitucionais quanto garantias há na constituição, serviu a muito mais inteligente propósito que envolver pessoas do PT ou mesmo sequestrar por um dia o ex-Presidente Lula.

A lava-jato envolveu quase todo o PMDB e adjacentes partidos de aluguel, bem como boa parte do grande capital nacional. Nisso ela foi uma manobra genial.

Essa gente domina o congresso nacional e vê-se na iminência da humilhação judicial instrumental. Só uma pessoal os pode oferecer socorro eficaz: José Serra. Porque ele pode mandar a imprensa parar de repercutir e alimentar o espetáculo de linchamento judicial tático.

Então, José Serra já está acordado com Michel Temer, que estará bem pago com a faixa presidencial e o título; nunca almejou mais, nem seria capaz de ir mais além, realmente. Para dar provas de seu real poder junto à imprensa, Serra providenciou sinais: uma revista da Globo já detalhou esquemas de Aécio neves; um portal de notícias da Folha de São Paulo fez o mesmo.

Ficou claro que, hoje, a opção é pelo golpe via impeachment e que, portanto, o espetáculo judicial de perseguição a Lula, incessantemente mostrado e reapresentado na imprensa, é jogo de cena e meio de desviar atenções e ganhar tempo para a consumação do golpe parlamentar.

Em um governo Temer, Serra seria o poder de fato e poderia consumar seu sempre acalentado projeto de entregar a maior riqueza do país aos interesses externos: o petróleo. Paralelamente a isto, que é o principal, Serra trabalharia com afinco para a aprovação do modelo sonhado pela classe dominante brasileira: o parlamentarismo.

Aprovado o parlamentarismo, ou seja, a democracia sem povo, os riscos da loucura generalizada estariam minimizados, pois o presidente seria figura meramente decorativa.

Dramático é esse iminente desfecho em que um governo foi sitiado e teve retirada qualquer capacidade de reação pelo assalto em várias frentes com a imprensa a fazer bombardeio diário. E patética é a situação de supostos líderes das hostes oposicionistas que se viram enredados no plano de Serra e sumariamente expurgados pela imprensa na reta final.

O sequestro do ex-Presidente Lula.

O golpe judicial-mediático segue um guia muito bem definido e hoje promoveu o sequestro do ex-Presidente Lula para humilha-lo. Falou-se em condução coercitiva para prestar depoimento à polícia federal. Ocorre que o sistema jurídico desconhece condução coercitiva de quem não se recusou a ir depor.

Montou-se uma encenação digna de filme ruim de hollywood; uma verdadeira palhaçada, cara e desnecessária. O sequestro de Lula implicou a participação de duzentos policiais vestidos como soldados de elite, todos a portarem metralhadoras. Envolveu dezenas de veículos e cinco helicópteros. Como se um velho de setenta e tantos anos oferecesse algum perigo…

A encenação faz parte da narrativa. É talvez a parte mais eloquente, posto que de apelo visual de uma linguagem a que a classe média está acostumada precisamente por ser a dos filmes que ela aprecia. É a linguagem visual da violência, cujo protótipo é o militar em indumentária de combate e fortemente armado.

De pouco adiantaria o golpe final a ser dado contra Dilma e o Estado de direito no TSE com um Lula politicamente viável para as eleições presidenciais de 2018.

Em dois anos ou pouco menos que isso as atuais oposições aplicam políticas brutalmente regressivas e condenam milhões de pessoas ao reempobrecimento, que isto se encontra no seu programa. Um governo das atuais oposições terá de satisfazer o anseio das classes médias de devolução dos servos às senzalas. Terá de cortar programas de rendimentos mínimos porque é isso que espera deles pelos que os apoiam.

Todavia, pouco menos de dois anos não serão suficientes para cumprir a íntegra do programa entreguista que prometeram aos patrões reais.

Daí que um candidato de esquerda como Lula, em 2018, depois da deterioração da qualidade de vida e do poder de compra dos que ascenderam nos anos de governo dele, seria muitíssimo competitivo. Exatamente por isso, talvez mais importante que derrubar Dilma é interditar Lula.

É possível que os golpistas adiram à mais vil das estratégias que é tornar o país caótico e ingovernável até o término do mandato de Dilma, sem contudo consumar o golpe de Estado. Assim, chegaríamos a 2018 sem candidatos nacionalistas viáveis e os entreguistas teriam reais chances de ganhar nas urnas e cumprir todo o programa de empobrecimento dos que ascenderam e entrega das riquezas nacionais.

Judiciário: caríssimo e gerador de instabilidade.

Presentemente, duas corporações investem contra o desenvolvimento social, econômico e institucional do Brasil: a imprensa e o judiciário. É até difícil saber qual é pior, mas é certo que da imprensa, como instituição majoritariamente privada – ao menos na aparência – não se espera grande coisa, exceto se se for muito ingênuo. Na verdade, vistas as coisas com rigor, a imprensa é pior, até porque é a garantidora e estimuladora das atuais investidas e excessos do judiciário.

 

Claro que é ingenuidade esperar do judiciário que não seja uma corporação a pensar principalmente em si, a despeito de todo o discurso que produz em sua defesa, a partir do mito da imparcialidade. Ora, é próprio das corporações, estatais e privadas, pensarem principalmente nos seus interesses e isso não é o extraordinário.

 

O que permitiu a essas instituições o poder destrutivo e a imunidade que têm foi a apropriação do mito da imparcialidade. Para tanto, trabalha outro mito, no caso específico do judiciário, o da especialização técnica, que seria algo destituído de conteúdo ideológico ou político, algo como a ciência inerte em termos de valores.

 

Amparado nessas ilusões disseminadas com ajuda da imprensa, o judiciário brasileiro faz o que quer, ao custo que for, e permanece imune a qualquer crítica. Porém, um poder imune à maior de todas as críticas – que são as eleições, a crítica democrática – não poderia jamais fazer pouco da constituição, das leis, decidir casuisticamente segundo o capricho momentâneo deste e daquele juiz.

 

Um poder não legitimado democraticamente não pode se arrogar legislador, não pode relativizar garantias, não pode fazer pressão como meio de produção de provas, não pode ter postura exibicionista.

 

Mas, hoje, o judiciário brasileiro não apenas é um poder sem legitimidade democrática sobre que não incide qualquer controle efetivo, como é tudo isso a um custo obsceno. Quando é para extrair conclusões favoráveis aos seus interesses, a corporação  gosta de comparações. Quando as conclusões são-lhes desfavoráveis, não gostam. Claro, nisso são oportunistas.

 

Pois bem, o judiciário brasileiro é o mais caro do mundo! E este preço absurdo foi atingido à margem da legalidade estrita, com a criação de vantagens astronômicas e injustificadas por meio de atos internos. Acontece que a legalidade dessas iniciativas será decidida por eles mesmos, os beneficiários!

 

Por meio do escandaloso expediente das verbas indenizatórias, esses funcionários auferem mais que o teto remuneratório do serviço público. Na verdade, auferem muito mais. Há semi-deuses ganhando em torno a R$ 70.000,00 por mês, o que é aberrante, nada menos. Há verdadeiras festas de auto concessão de vantagens retroativas, sem base em coisa nenhuma além da própria vontade de abrir os cofres públicos em benefício próprio, mesmo quando a situação recomenda austeridade.

 

O Brasil tem a maior relação de funcionários da justiça por cem mil habitantes do mundo. O judiciário brasileiro custa 1,3% do PIB, algo extraordinário para um sistema de resolução de conflitos muito ruim. Na Alemanha, custa 0,3% do PIB e no Chile 0,2%, para ficarmos apenas em dois casos. E não seria digno de ninguém que tenha um cérebro sadio dizer que o brasileiro é melhor que qualquer outro.

 

Não é melhor. É plausível afirmar que é pior e certamente muito mais caro; é uma deformação sem precedentes na história. A média remuneratória do judiciário brasileiro é de R$ 10.000,00, incluindo-se juízes, funcionários, terceirizados, tudo enfim. Isso é cinco vezes o PIB per capita do Brasil, o que revela a magnitude da aberração. Nem os baixos salários dos milhares de terceirizados baixam essa média.

 

Servir-se de manobras ilegais para sugar mais dinheiro foi chegar ao grau zero da honradez. Não que isso seja surpreendente vindo desta gente, mas é um escárnio com o povo deste país, um desdém sem tamanho com quem ao final paga a conta deste convescote imoral.

 

Um semi-deus juiz recebe em torno a cinco mil reais de auxílio-moradia, uma verba sobre que não incidem imposto de renda nem contribuição previdenciária! Por que? Qual a razão disso? O salariozinho irrisório de R$ 30.000,00 não permite o juiz morar em algum canto? Por que todo o restante das pessoas mora à custa dos seus salários e os juízes não o podem?

 

 

Recebem auxílios para se alimentarem, auxílios para pagarem as escolas dos filhos, auxílios para comprarem livros, têm 60 dias de férias remuneradas ao ano, enquanto os mortais têm 30, têm recessos remunerados. Isso são privilégios injustificados, nada mais.

 

Essas aberrações nada têm a ver com garantias para o exercício das funções, são privilégios sem previsão legal, o que é mais grave. Por que em toda parte juízes desempenham suas funções sem essas aberrações remuneratórias e aqui não é possível? Claro que é possível, o que falta é controle social sobre esse corpo autônomo dentro do Estado brasileiro.

 

Falta a esta corporação noção de risco, falta noção de solidariedade social, falta autocrítica, falta conhecimento humanístico, falta autenticidade, falta legitimidade democrática para atuar como legisladores. Para investir contra os cofres públicos desta forma e torcer a constituição do país corriqueiramente a bem de a interpretar, o mínimo que seria necessário era ir a votos ou empunhar armas.

 

Eles contam com a blindagem da imprensa, que silencia sobre essas aberrações enquanto eles estiverem juntos na cruzada golpista e entreguista que paralisa o Brasil. São tão ávidos e imediatistas que não percebem que a imprensa os abandonará tão logo tenha êxito no seu desiderato político, se o tiver.

 

Os realmente poderosos que guiam a imprensa e o judiciário sabem muito bem que se chegarem ao poder central terão de se livrar desta monstruosidade, tanto pelo custo estúpido, quanto pelo que representam de instabilidade, sempre origem de decisões conflitantes, algumas absurdas, outras voluntaristas e quase todas tendentes a gerar o desgoverno.

 

Talvez a única coisa auspiciosa de um governo entreguista direitista resultante do golpe, caso tenha êxito, seja precisamente o expurgo que haverá na corporação.  Isso, porque ninguém governa com uma corporação destas por perto.

 

 

Mas será terrível também porque é previsível que este movimento pendular obedeça à lógica esquizofrênica que governa as mudanças no Brasil. Se o golpe tiver êxito, os golpistas não partirão para ajustar e por os necessários limites a esta instituição fundamental: farão terra arrasada e se servirão da imprensa para desqualificar o judiciário, como sempre fazem com os grupos potencialmente incômodos.

Michel Temer entra no golpe.

Para os reais patrões do golpe de Estado que está em marcha no Brasil pouco importa que ascenda à presidência Pedro, Maria ou João; pouco importa que seja preto, branco, amarelo ou verde, desde que entregue o petróleo.

Porém, para os agentes internos, políticos profissionais, importa muito, sim, quem ascenderá, porque o poder, mesmo num país espoliado de sua maior riqueza, é sedutor e meio de vida desta gente. O festim no Estado ainda é muito grande mesmo sem as riquezas do pré-sal.

A facção golpista funciona como uma máfia; todos desconfiam de todos e não é senão ingenuidade ou jogo de cena usar o termo confiança. Ninguém se esforçará para dar o golpe para a ascensão dos outros. Para ser sócio minoritário, pode ser melhor deixar como está, principalmente para o PMDB, partido do vice-presidente Michel Temer.

Recentemente, Temer entrou no golpe explicitamente. À partida, foi uma bela jogada que, a par com a manobra desesperada de Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados, parecia ter sido o prenúncio do xeque-mate na honrada presidenta Dilma Rousseff. Todavia, a matemática do golpe é complicada.

A adesão do vice-presidente ao golpe seria capaz de envolver na manobra uma peça fundamental: o PMDB, partido sem matizes ideológicas, extremamente capilarizado, sempre sócio de todos os governos desde a redemocratização. À exceção de um ou outro quadro com densidade ideológica e honradez, o PMDB sempre tem sido um partido de aluguel; o maior deles.

Sem o apoio deste partido e depois que Eduardo Cunha admitiu a abertura do processo de impedimento da presidenta, qualquer governo cai, no Brasil. Acontece que o falso motivo jurídico invocado para o impedimento atinge também Michel Temer.

A abertura de créditos orçamentários que dependiam ainda de ajustes na meta fiscal – uma coisa muito corriqueira e sempre feita, para que o país não pare – foi feita também por Temer, em várias ocasiões em que esteve no exercício da presidência.

Logo, a puerilidade invocada como motivo para impedir Dilma atingiria o imaculado Michel e a coisa teria enormes chances de sair do controle e serem ambos derrubados por um falso motivo. Não é muito inteligente supor que o PMDB trabalhará para derrubar o puro Michel também, depois de perder o honesto Eduardo Cunha, que, hoje, precisa ser logo expurgado, pois mais dificulta que facilita o golpe.

O Eduardo Cunha tentou chantagear o governo com a abertura do processo de impedimento. Do ponto de vista dele, não resultou bem. Ele fê-lo como estratégia pessoal de defesa no processo aberto para sua própria cassação. Hoje, desesperadamente, ele retarda os andamentos de ambos os processos. Ou seja, para os golpistas é melhor que se vá logo, mesmo que leve consigo um ou outro parlamentar que navegou nas suas caudalosas ajudas eleitorais.

O Cunha fez o que se esperava dele, mas agora precisa ir-se para destravar o processo. Acontece que ele não quer sair de onde está, até porque, como muitos sabem e dizem, não é um mau lugar e ele precisa de mandato e de não sangrar, porque se verter sangue as piranhas da inquisição o pegam.

O golpe que leve Dilma e Michel juntos não interessa ao governador Alckmin, evidentemente, porque instalaria na presidência o senador Aécio. Obviamente, não interessa tampouco ao senador Serra, que queria ser ele mesmo o homem a servir aos patrões o precioso óleo mineral. Ademais, Serra não teria quaisquer chances para 2018, tanto por ser péssimo nas urnas, quanto por ser detestado por Alckmin, que hoje manda no PSDB.

Em um partido como o PSDB, nenhum desses dois políticos paulistas proeminentes acreditaria em acordo com Aécio para que ele, uma vez instalado na presidência, não concorresse em 2018. Haveria, isso sim, a desintegração do partido, em lutas fraticidas piores que as ocorridas nas últimas presidenciais.

Por outro lado, a tentativa de focar o golpe do impedimento apenas em Dilma, quando os motivos invocados atingem tanto ela quanto Michel, seria muito arriscada. As farsas devem ter tamanhos adequados, não convindo as exagerações demasiado grotescas.

Claro que sempre há um punhado de juristas de algibeira a soldo da imprensa dispostos a sustentarem a aberração de que o processo de impedimento é puramente político. Não é. Puramente político, do ponto de vista teórico, é o processo eleitoral, principalmente tratando-se de eleição para cargos majoritários.

O povo – detentor da soberania, ao menos em tese – vota diretamente para presidente da república. Os parlamentares, mandatários e, portanto, exercentes da soberania em segundo grau, em nome do povo, não podem decidir derrubar o presidente apenas porque o querem fazer. Os parlamentares não têm mandato para violar a vontade popular expressa na eleição do presidente, sem razões jurídicas sólidas para tanto.

Assim, o impedimento sem motivos antecedentes – a prática de ilícito que implique responsabilidade do presidente – é um impedimento de fancaria, uma inconstitucionalidade clara como o céu de Brasília, uma coisa que pode destampar reações inesperadas, de tão farsesca.

O chefe de Estado eleito por maioria do povo não é apeado do cargo por capricho ou porque o parlamento acha que está sem condições de governar. Não cabe ao parlamento revogar o mandato outorgado pelo povo por qualquer outra razão exceto a pratica delituosa nítida. E, no caso de tentarem separar os casos de Dilma e Michel, terão de partir para tal aberração.

Claro que aberrações têm sido comuns no jogo político, seja ele jogado no congresso, seja nos tribunais. A destruição do Estado de Direito já vem de algum tempo e é realizada sistematicamente pelo judiciário e pela imprensa. Todavia, nos últimos processos políticos conduzidos nos tribunais fez-se hercúleo esforço para manter as aparências, para que parecesse haver forma jurídica.

No caso do impedimento não antecedido de motivos e focado apenas na presidenta, a fraude será desmedida. Até os processos políticos que contam com o acobertamento da imprensa requerem proporcionalidade. Quando um processo é visivelmente desproporcional, acontece o que se dá diante do muito feio, diante do grotesco: a incompreensão.

O dr. Stanley Milgram tem algo a ensinar ao contra-golpe.

Além das experiências e posteriores teorizações dos professores Roger Sperry e Michael Gazzaniga com secção dos corpos calosos e suas assombrosas consequências em termos de consciência e vontades autônomas, as investigações do doutor Stanley Milgram parecem-me o que há de mais interessante em termos de humano.

O doutor Milgram elaborou o experimento em obediência à autoridade, na Universidade de Yale, a partir de 1964. Dez anos depois, descreveu os experimentos e avançou hipóteses de conclusões no livro Obedience to Authority: An Experimental View.

Feliz ou infelizmente – mais provável o segundo advérbio – a coisa veio a seguir ao julgamento de Eichmann, após sequestro dele e condução para Jerusalém. Infelizmente porque tudo que se associa, por mais tenuemente, ao holocausto dos judeus entre 1940 e 1945 torna-se complicado, mais ou menos proibido e passível de interpretações axiomáticas. Mas, deixemos Eichmann para lá.

A experiência, em termos de equipamentos e tecnologia envolvidos, era muito simples. A encenação que ela implicava, também. Nem tão simples são as conclusões que se podem extrair, notadamente se nos detirvermos, ao depois, no que pode significar autoridade, no alcance deste termo, no que a constituiu e suporta.

Basicamente, três pessoas estavam envolvidas no experimento: o pesquisador e dois voluntários supostos. Destes últimos, um faria o papel do educador e o outro do aluno. Milgram convocava os voluntários por meio de publicações em jornais e oferecia uma módica recompensa – quatro ou seis dólares, não sei ao certo – para quem se dispusesse a participar da experiência científica. O propósito declarado era investigação sobre memória.

À partida, no recinto do experimento, o pesquisador trajado adequadamente de cientista, com jaleco branco e a indefectível gravata, recebia os dois voluntários; um dos voluntários era um ator, circunstância desconhecida do voluntário real. Em seguida, apresentava ao real voluntário dois papéis dobrados que seriam a forma de sorteio dos papéis. Ambos os papéis continham o nome educador. Sempre o voluntário real seria o educador, portanto.

O experimento consistia no seguinte: educador e aluno ficariam em salas diferentes, sem se verem. O educador leria para o aluno uma série de substantivos relacionados a adjetivos. Vinte pares associados, como, por exemplo, céu azul, vento fresco, maçã vermelha, carne apetitosa, etc. O aluno deveria prestar atenção à leitura inicial e pausada dos pares de substantivos e adjetivos relacionados.

Depois, o educador diria ao aluno, por um sistema de comunicações entre as salas diferentes, substantivos da lista, a que o aluno deveria responder o adjetivo correlato, conforme ao que tinha ouvido na leitura da lista toda, anteriormente. A cada erro do aluno, o educador deveria aplicar-lhe um choque elétrico que era incremental de 15 em 15 volts, a cada resposta errada, até ao máximo de 450 volts, choque potencialmente mortal. O educador, isto é essencial, não sabia que o aluno era um ator e que os choques na verdade não ocorriam.

Muitas vezes, antes do início do experimento, era dito ao educador que o aluno sofria de alguma cardiopatia. Os equipamentos dispunham de um sistema que a cada choque, conforme a intensidade, reproduzia gritos previamente gravados. O pesquisador, com ar fleumático e importante, ficava ao lado do educador que perguntava e aplicava choques punitivos no aluno.

Contrariamente ao que esperavam cientistas previamente ouvidos por Milgram, na primeira rodada de experiências, 65% dos voluntários no papel de educador foram capazes de chegar ao choque máximo de 450 volts…

A enorme maioria chegava ao ponto extremo com sinais imensos de estresse e desconforto psíquico. Hesitavam, ficavam aturdidos com os horríveis gritos dos alunos que supostamente levavam os choques, mas iam adiante. O pesquisador ao lado do voluntário educador, a sinais de hesitação e conflito interno, mantinha postura compenetrada e instava o educador a continuar, com frases padrões como: por favor, continue; a experiência necessita que você continue; é totalmente essencial que você continue; você não tem alternativas, deve continuar.

Essa experiência foi replicada em outros locais com resultados muito pouco divergentes. Os voluntários eram capazes de punir e infligir sofrimentos imensos a terceiro sem qualquer outra razão além da obediência à autoridade, representada pela presença do cientista. Há uma variação significativa na ida aos máximos em função da proximidade física do cientista e do educador; isto é relevante.

Observou-se uma redução da disposição a punir severamente quando o cientista estava mais distante fisicamente do educador ou quando o instava menos a prosseguir. A obediência é uma relação dinâmica, percebe-se. Com o cientista fleumático, de poucas e objetivas palavras, perto e pronto a instar o educador a seguir adiante, este continuava a fazer sofrer o aluno, mais e mais, mesmo em tensão psíquica.

O senso-comum rápido propôs a conclusão meio simplista: a obediência à autoridade suplanta os valores morais. Mesmo não apreciando nada que se sirva do termo moral, tenho de dizer que esta conclusão tem sua verdade. Mas, há mais que isso. Inicialmente, há para além disso: o conflito, em muitos casos, cessa. Um dos pólos da comparação extingue-se e há apenas obediência.

Em certo momento e em alguns casos, não se vai adiante a despeito do conflito entre obedecer à autoridade e valores morais, prossegue-se porque o conflito foi superado. Não há mais isto ou aquilo. Acaba-se a relação, na medida em que um dos pólos de comparação já foi excluído. Esta exclusão é basicamente decorrente da cessação do pensar autônomo. Deixar de comparar é deixar de pensar.

Na esteira da experiência e das hipóteses e mesmo conclusões avançadas pelo próprio Milgram e outros que se aventuraram a teorizar sobre a experiência, surgiu, claro, outro simplismo enviesado. Numa correlação ideologicamente óbvia demais, a autoridade foi imediatamente associada ao Estado.

Ocorre que o Estado não é, hoje, nem de longe, a maior autoridade a incidir nas vidas das pessoas, para desespero de quem ler Orwell como se tivesse sido escrito hoje ou há poucos trinta anos. Orwell é genial, mas 1984 é uma teoria em que no lugar do Estado pode-se por outra coisa, conforme mais adequada segundo o tempo. A teoria é boa, mas as personagens não são estáticas.

Muito mais que o Estado, a ciência, a imprensa e o tribunal são autoridades aptas a conduzirem à obediência cega. São mais legitimadas, para se usar linguagem jurídico-social da moda. Essa legitimação da autoridade advém da maior de todas as mentiras: a imparcialidade.

Certas instituições conseguiram criar e estabelecer o mito das suas imparcialidades, quase sempre a partir do discurso de verniz científico. Aqui, cabe menção a Foucault, que viu bem a narrativa e o discurso científico como indutores de legitimação para exercício de poder, do poder indiscutível e impassível de objeção dialética, exceto se se tratar de uma falsa dialética exercida dentro do círculo.

A imprensa e o tribunal tiveram de tornar-se científicos; perceberam-no logo. E foi fácil, porque alguém disse as palavras mágicas: método e sistema. Especializaram-se e se apropriaram da autoridade da ciência, esta, na origem, não destinada a basear narrativas para obtenção de poder.

Era bastante óbvio que instituições quisessem para compor sua narrativa algo como tudo que se soltar cai. Elas precisavam de suas leis da gravidade e as criaram a partir do uso da linguagem própria para enunciar leis físicas. Perderam o talvez e assumiram o axioma, com a chatice das mil e uma falsas dúvidas e da insistência em afirmar metodologias.

Hoje, especificamente no Brasil, imprensa e tribunal se retroalimentam  no jogo da afirmação que é legítima porque é e pronto. E, claro, isto tem propósitos políticos; isto visa ao comando do Estado sem a necessidade de jogar o jogo político, que foi tornado coisa feia, não científica, não imparcial. A autoridade da imprensa e do tribunal atua sobre os alunos como no experimento do doutor Milgram: eles a seguem, não a despeito de conflitos, mas sem conflitos.

 O problema disto – e aqui falo da situação do Brasil atual – é o mesmo da reação em cadeia dos núcleos de urânio que se desintegram: há um ponto em que não há barras de grafite que cessem o processo. Neste ponto, o conjunto dos cidadãos parece ter seus corpos calosos secionados e agir apenas pelo hemisfério direito do cérebro – aqui não há trocadilho, devo dizer.

A travagem deste tipo de processo tem a mesma chave de sua abertura: a autoridade. Ela cria-se; ela pode ser desfeita também, por outro discurso a ela contrário. As objeções dentro do modelo não resultam senão em morte lenta, retórica de nada e frustração.

A autoridade que alimenta os comportamentos irracionais e selvagens da pequena-burguesia brasileira deve ser contraditada. Ela não tem – porque não existe isso – as bases que afirma ter: imparcialidade e ciência. A imprensa e o tribunal não são veículos da verdade, não são instituições desinteressadas; são partes num processo. Isso deve ser dito.

Golpe paraguaio é mais barato que impeachment.

Eduardo Cunha será liquidado na máquina de moer carne judicial. Terá de ser assim para se manter a coerência interna da narrativa; o judicial é percebido como jogo pela regra, embora seja ele um fazedor de regras e, portanto, agente do jogo político que não conhece regras.

Uma figura quase mafiosa, que se serve há muito da chantagem como modo de operação, não é fácil de se descartar, nem de fazer acordos. Assim, deve cair por obra do poder moderador, porque o poder político real precisa podar seus galhos ruins por outras mãos.

O golpe, hoje, precisa mais de livrar-se do deputado que de contar com sua ajuda. A presença do deputado como protagonista do golpe é o retardo da derrubada da Presidente. A situação dele é crítica e um processo de impedimento por ele aberto seria facilmente desacreditado, por evidente movimento pendular de vingança ou barganha.

Além disso, o processo parlamentar é caro, tanto nas seduções imediatas – à semelhança do ocorrido  na votação da emenda constitucional da reeleição para cargos executivos – quanto nas seduções de longo prazo, a partir de compromissos  mais ou menos estáveis.

O parlamentar médio não é estúpido nem suicida como o médio classista típico, leitor de revista veja. A ação dos deputados e senadores médios pauta-se por cálculos muito mais objetivos. Realmente, um parlamentar com raiva é, em 80% das vezes, mera encenação.

O impedimento tem outros inconvenientes que os golpistas de alto escalão consideram atentamente. Se o congresso afasta a Presidente da República, o vice-Presidente assume o posto. Muito embora seja um conservador, ele não é exatamente a quem o partido líder do golpismo quer dar a presidência.

A hipótese de se impedirem ambos Presidente e vice-Presidente é remotíssima porque é dificílimo encontrar ou fabricar qualquer puerilidade com ares jurídicos contra quem não tem efetivo poder, como é o caso do vice. Além disso, Michel Temer é do PMDB e seria algo incoerente demais até para os padrões deste partido.

O cenário de três anos de Michel Temer na presidência da república não é precisamente o sonhado pelos líderes do golpismo, que servem marginalmente a si mesmos e principalmente aos interesses entreguistas. Não haveria muitos problemas para Temer abraçar um roteiro entreguista, mas os ganhos marginais dos operadores políticos do PSDB seriam muito reduzidos.

Temer poderia muito bem articular a interlocução direta com os interesses externos e afastar destes entendimentos os intermediários atuais, tornando-os desnecessários. E teria chances de reeleição em 2018, caso não incorresse na tolice de impor retrocessos sociais muito drásticos.

Daí que o golpe paraguaio – o golpe judiciário – é muito mais plausível, por muito mais produtivo para a vanguarda do golpe. Além de aparentar isenção – pois as massas ainda creem nesta quimera – seria muito mais barato em termos de compromissos. Em um tribunal qualquer com dez juízes, dois estão intimamente comprometidos e os restantes vão na onda com medo da imprensa ou por convicção mesmo, porque leem revista veja.

O único empecilho ao golpe paraguaio é quem assume após consumada a derrubada. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, não tem qualquer interesse em patrocinar um golpe que favoreça o senador Aécio Neves. Alckmin sabe muito bem que seria competitivo nas eleições de 2018.

Aliás, com a blindagem poderosa e a propaganda constante contra o governo federal patrocinados pela imprensa, Alckmin seria muitíssimo competitivo nas presidenciais de 2018. Caso Aécio herde a presidência sem a ter ganho nas urnas, evidentemente não haverá espaço para o governador de São Paulo em 2018.

E tampouco em 2022, porque após sete anos de governo Aécio será virtualmente impossível alguém da sua sigla eleger-se presidente.  Para quem não acredite, basta lembrar o estrago feito por oito anos de Fernando Henrique, tanto no país, quanto na imagem dele mesmo e dos seus acólitos.

Daí que a resolução de conflitos internos ao PSDB é essencial no tempo do golpe, seja ele parlamentar, seja judicial, sendo este último mais provável.

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