A discrepância de resultados obtidos a partir de um mesmo método invalida uma conclusão ou tese científica especial, em física, por exemplo. Todavia, isso não ocorre em filosofia e, por isso mesmo, o problema central do capticismo – a possibilidade do conhecimento – é um problema mal colocado.

A unanimidade absoluta ocorrerá com a mais intensa tolice que se enuncie, porque unanimidade e tolice em torno à qual ela se forma crescem na razão direta, a primeira na da segunda.

Atraiu-me ao assunto a constante curiosidade que tenho a respeito e pontualmente a leitura do Prólogo à História da Filosofia de Karl Vorländer, escrito por José Ortega y Gasset e publicado na edição da Revista de Occidente da obra orteguiana História como sistema.

Ortega aponta que a barbárie do especialismo, conceito tratado a fundo em um dos artigos da Rebelião das Massas, foi possível devido à perda de toda noção clara, na Europa, de filosofia, a partir de 1850. Nessa época, triunfaram os especialistas, médicos, engenheiros, advogados, físicos, muito sabedores de uma coisa e incapazes de reconhecer seu profundo desconhecimento das demais.

O indivíduo assim formado projeta seu sentimento dominador, baseado na especialidade que domina, para os temas que ignora. Assim, arrogantemente nega os outros temas e ciências.

Na raiz dessa projeção de violência e desprezo para todos os conhecimentos que não seja os do especialista e o orgulho de sua classe, está o fetiche da não dissonância. Ortega vai ao ponto preciso, ao dizer que: Uno de los partos de tal insciencia colectiva fué la afirmación completamente caprichosa de que en disciplina alguna habían discrepado tanto las opiniones como en la filosofia.

Segue afirmando que ver na discrepância doutrinal uma razão para cepticismo é indiferença tão velha como plebéia e pouco meditada. Realmente, essa objeção que se faz à filosofia, a da impossibilidade do conhecimento, baseia-se no antiquíssimo argumento da dissonância das idéias.

Em primeiro lugar, essa dissonância é aparente, porque filosofia é uma forma de conhecimento histórico e essa não discrepa, senão que acontece continuamente. Não se trata, tampouco de ver as coisas aqui sob a dialética romântica de Hegel, que era uma estranha dialética, ela mesma triunfante e termo final da história e consequentemente dela mesma dialética.

Trata-se de observar que as discrepâncias, além de serem muito menos agudas do que possam à primeira vista parecer, são mais cronológicas que conceituais, o que não poderia ser diferente porque isso tudo existe porque existem pessoas. O que há são filosofias e seus homens e seus tempos.

O fato é que elevou-se no senso comum a concordância – e, no limite, a unanimidade – a sintoma da verdade, ignorando-se que pode dar-se concordância e, novamente, até unanimidade, em torno ao erro, também.

Dois erros aqui estão bem evidentes. O primeiro é confundir o resultado obtido a partir de um método ou experiência – técnica de ciências como a física – com resultado derivado de alguma concordância. Ora, a concordância que pode haver em torno à lei da gravitação universal não lhe confere validade alguma, apenas é uma evidente aceitação de uma regra física.

O segundo erro é não perceber que a concordância – e a eventual unanimidade, repetirei exaustivamente – é método da política, que não é ciência ou forma de apreensão de realidade. Filosofia e política são coisas diferentes e a primeira não busca validade na ausência de discrepância.

Por falta de concordância, a ser obtida mediante sufrágio, pode alguma empresa política perder legitimidade, mas não pode a filosofia perder validade por falta desses elementos. É tolo o cepticismo que se fundamente nas variedade imensa de opiniões e teorias, ou seja, na discrepância delas.

Da mesma maneira, é tolo o atéismo por improbabilidade. Ora, isso não é física e não se discute nesses termos. O ateísmo só tem sentido por negação pura e simples, ou seja, por outro teísmo que se lhe superpõe. Tanto é assim, que o teísta que constrói seu Deus com Aristóteles, com causas e necessidades, recebe a objeção nos mesmos termos e métodos Em sentido contrário, imagine alguém objetar Teresa D´Ávila!

Lembro-me bastante que uma vez conversava sobre algo discretamente filosófico com alguém. Não me lembro do assunto, que depois do que ouvi a título de objeção, o assunto tornou-se uma insignificância a ser esquecida. Lá pelas tantas, meu interlocutor disse-me, com ares triunfantes, que só eu pensava daquela maneira!

Ora, meu interlocutor, fetichista da unanimidade, pensava em termos políticos e não percebia que estávamos em outro território, em que a concordância ou discordância, maior ou menor, não era critério de validade.