Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Tag: Português

Os plurais foram-se da língua falada no Brasil.

Há tempos a abolição dos plurais na língua falada pelos brasileiros chama minha atenção. Realmente, agrada-me bastante pensar em coisas de pouca ou nenhuma utilidade prática; assim, penso mais livremente, certo de não estar a promover coisa alguma, a propor nada.

A princípio – além de um falar feio – parecia-me a renúncia a uma possibilidade riquíssima da língua: a flexão em número. Renúncia como outras tantas, que implicam perda de precisão, algo como usar uma mesma e única chave inglesa, ainda que se disponha de todo o jogo de chaves, cada uma com sua abertura específica.

Se assim fosse, provavelmente iríamos no caminho de outras supressões, como, por exemplo, a de gênero. E nada indica isso, antes, ao contrário, a língua falada no Brasil é bastante marcada por flexões de gênero. A tal ponto que parecem mais vincos semânticos que flexões de classes de palavras, de nomes e de qualificativos de nomes.

Por outro lado, nunca me pareceu que fosse algo como um uso coloquial, ou seja, como se usam termos diferentes em locais diferentes, para chamar a mesma coisa. Mas, tem, no fundo, a mesma desimportância das diferenças de usos de termos locais. Pode ter alguma relação com os usos locais, em termos de pronúncia, da mesma forma que algumas vogais suprimem-se na língua falada.

Na enorme maioria das vezes, o falante brasileiro não flexiona o substantivo em número, mas flexiona os artigos definido e indefinido. Ou seja, há plurais, indicados pelos artigos. É comum ouvir-se as casa e os carro. Está claro que se fala de mais de uma casa e de um carro, embora os substantivos estejam no singular. Mas, também está claro que o erro é meramente normativo, formal, e, não lógico.

De certa forma, o falar coloquial inseriu uma declinação, a depender somente dos artigos. Diferentemente acontece com a ausência dos plurais nas pessoas verbais. Essa ausência, além de parecer-me ainda mais feia, suscita mais pensamento.

Eles foi é construção um pouco mais difícil de perceber como ajuste perfeitamente lógico, embora simplesmente infrator de alguma regrinha formal. Uma maneira de assemelhar as explicações seria dizer que as ações tomam-se como substantivos. Mas, isso é falso, pois as pessoas não igualam, no falar, nomes e ações. Elas usam a mesma lógica que supõe a flexão somente nos artigos para supo-la apenas nos pronomes.

Somos simplificadores ao extremo e mal educados, formalmente. Nenhum problema com isso, todavia. Nem mesmo sob perspectiva gramatical, uma vez que a cada pessoa – sujeito, terceiro, singular ou plural – só pode corresponder uma ação. Eu é, tu é, ele é, nós é, vós é, eles é, são formas logicamente possíveis. Inclusive, em algumas línguas, as flexões não têm diferenças sonoras.

Problemas surgem se quisermos falar sem pronomes e artigos, o que é possível, como pode ser percebido neste período. E, vistas por este ângulo, as supressões de plurais são, sim, um empobrecimento. São uma renúncia a possibilidades mais amplas, embora não comprometam a comunicação, nem agridam a lógica da língua.

Polêmica linguística e má-fé. Economista ecológico vai além de Ruy Castro.

O Ministério da Educação recomendou um livro chamado Por uma vida melhor, de Heloísa Ramos, para os ensinos fundamental e médio. A partir de então, uma chuva de ataques ao Ministério iniciou-se. Estrategicamente, trata-se de atacar o governo da Presidente Dilma. Os autores do ataque, além de inspiração política oposicionista, movem-se por uma extrema arrogância.

Movem-se, também, por ignorância e má-fé, assim misturadas, a pior conjunção de móveis que pode estar por trás de posturas humanas. Ignorância porque significativa parte dos atacantes reserva-se uma avaliação acima da realidade e, má-fé porque sabem ou têm condições de saber, que as acusações não têm fundamentos.

Dizem que o livro estimula falar incorretamente, em resumo. Não é isso que o livro faz, ele distingue uma obviedade acaciana: fala-se de uma maneira e escreve-se de outra.  Aponta uma realidade indiscutível – presente do dia-a-dia de todos os arrogantes insatisfeitos – que se encontra em todas as línguas no mundo. Não se fala como escreve-se, o que nunca representou ameaça alguma à norma culta.

O tal livro faz algo que é detestável para alguns pretensos intelectuais brasileiros, ele desvela a realidade e não a nega. Ele não propõe, em qualquer escassa linha, a supressão da norma culta na escrita, apenas aceita que as comunicações informais, faladas, podem dar-se sem seguirem estritamente as regras gramaticais. Inclusive, o livro alinha exemplos de falas informais e propõe suas transcrições para a forma gramaticalmente correta.

Esta óbvio que o livro não propõe que se fale errado. Não é demais apontar novamente que ele aceita a realidade, sem propor o juízo de valor dicotômico bom e mau, tomando a norma culta como parâmetro, o que não passa de uma profunda dominação. Todavia, o livro tornou-se táubua de tiro ao álvaro, de tanto levar frechada

Passei a semana lendo tolices maiores e menores sobre o assunto. Todas tinham em comum um mal disfarçado oportunismo político, porque a defesa da língua era, no fundo, o que menos importava para essas vestais defensoras da última flôr do Lácio. O ápice da arrogância parece ter sido atingido por Ruy Castro, em artigo publicado na Folha de São Paulo. Ele põe-se no lugar de grande escritor, ao fazer um apanhado deles que reproduziram falas coloquiais em suas obras ficcionais. A psicologia deve explicar essa mania de citações, que revela muito do desejo do citador de ser um dos citáveis.

Ler a continuação da bobagem na folha de província Diário de Pernambuco – das melhores que há – no domingo pela manhã, desafiou minha paciência. Um texto de um sujeito que se auto qualifica economista ecológico serve-lhe para o despudor de alinhar onde morou e por onde já viajou, essa forma já clássica de sublinhar a origem de classe, como muleta para apresentar exemplos de cultivo pela fala correta. Claro que o autor não perde a oportunidade de afirmar a excelência da educação que teve e sua poliglótica formação!

Não acredito que nem mesmo a economia ecológica seja feita, nos colóquios de economistas ecológicos – ou desses com os ignorantes – em falas fielmente corretas, todas elas perfeitas em flexões verbais, todas as concordâncias em rigor com a gramática, sem corrupções ou plebeísmos, sem um mísero você, essa corrução tão antiga como arraigada de vossa mercê.

O texto de hoje, que não é uma fala falada, evidentemente, está cheio de erros gramaticais, embora sejam irrelevantes: regências e virgulas, umas erradas e outras ausentes. O caso das regências é interessantíssimo, porque os equívocos quanto a elas devem-se basicamente aos hábitos da língua falada, ou seja, explicam-se pela linguística!

Interessante mesmo é uma premissa que o autor adota. Ele diz que em todas as línguas que conhece – e são muitas – nunca ouviu alguém que falasse diferente da norma culta. Isso é mais que uma tolice; deve ser, ou uma inverdade, ou uma confissão de ter falado muito pouco com estrangeiros. Bem, talvez o autor tenha passeado pelo mundo a conversar com pessoas que traziam suas falas previamente escritas!

É óbvio que se devem educar as massas, leva-las a conhecerem as normas cultas, porque desconhece-las é fator de exclusão. Mas, também é óbvio o quanto há de patético no afirmar que o tal livro estimula o erro e no afirmar que é desejável que se fale como se escreve, porque há vastos grupos que assim fazem…

Acabaram-se os plurais!

O título não é grande exagero; foram-se embora os plurais da língua falada pela imensa maioria das pessoas no Brasil. É engraçado, mas ainda impressiono-me com isso. Não é que ache bom, nem ruim, apenas feio.

Como acontece com quase tudo, o fenômeno é pouco distinto por classes sociais e econômicas, ou seja, permeia quase todas elas. É uma supressão democrática, ampla, geral e quase irrestrita.

Uma coisa tem-me chamado bastante atenção, é o seguinte: estou a falar com alguém que não usa plurais; uso as flexões de número porque habituei-me a elas e uso-as naturalmente; o interlocutor não percebe a diferença, ou seja, não se sente corrigido, nem provocado, nem coisa alguma; quer dizer, simplesmente deixou de perceber isso!

O comentário do parágrafo anterior explica-se porque seria sintomático que alguém percebesse nos plurais do interlocutor a falta deles na própria fala. E que assim percebendo, talvez se sentisse acusado de erro ou insinuadamente acusado. Não que alguém – eu, por exemplo – use dos plurais para acusar os outros, que os não usam, mas seria uma reação possível.

A indiferença como reação – ou falta dela, mais corretamente – significa que o normal é a falta de plurais, ou seja, os artigos flexionados indicando substantivos singulares, uma ilogicidade, mas, enfim, tornada normal.

Tento compreender as razões disso. Não quero fazer tese de investigação científica, mas fico a testar hipóteses mentalmente. Lembro-me que é relativamente comum as pessoas aproximarem as formas faladas, para obterem identificação com os interlocutores. Assim, conforme o meio e o interlocutor, fala-se mais ou menos sofisticadamente.

Mas, a supressão quase geral dos plurais na língua falada não se explica pelo que supus no parágrafo acima ou, pelo menos, não se explica somente por isso. Porque essas assimilações propositais soam artificiais e acabam por trair o propósito inicial de gerar identidade e simpatia.

Pensei também na lei do menor esforço ou, por outras palavras, na preguiça. Pensando bem, todavia, pareceu-me pouca razão, porque a flexão é fácil e implica poucas letras e poucos fonemas a mais.

Obviamente, pensei no hábito, e acho que é a razão. Porém, uma razão para o processo já em andamento, não uma razão inicial, por que não há hábitos iniciais. Por outro lado, lembro-me que o hábito não é tão amplo na língua escrita.

Aproveitando para escapar à busca por causas primeiras e reportando-me ao dito sobre língua escrita, passei a outra coisa interessante: uma significativa parcela dos que escrevem com plurais fala sem eles! Nesses casos, deve-se aceitar um divórcio completo entre o escrito e o falado.

O escrito é geralmente assumido como algo muito diferenciado, como um código difícil, a ser utilizado restritamente por possuidores de grandes segredos. É óbvio que o falado e o escrito são coisas diferentes e que o escrito, por exemplo, não reproduz as repetições e hesitações do falado. Todavia, a diferença entre os plurais e a falta deles é de outra natureza.

É um hábito que mostra o desprezo pela normatividade da gramática, por um lado, e pela lógica, por outro. Quanto à normatividade gramatical, pouco problema há, porque ela muitas vezes não tem com a lógica. Ora, se eu falo duas vaca, o duas já mostrou o plural, que a flexão no substantivo apenas vai completar.

Mas, se eu digo as porta, flerto com a preguiça e a falta de lógica, porque poderia ter dito a portas, cumprindo a mesma função e seguindo a mesma razão. Definindo, não há como escapar à necessidade de definir o número no substantivo.

O caso é que tornou-se normal, absolutamente normal e costumeiro. E que muitos, que abolem os plurais, sentem-se plenamente à vontade para apontar outros equívocos de pouca importância na fala de outros. Eis a guerra dos surdos contra os cegos…

Mia Couto em João Pessoa.

Olívia disse-me, hoje pela manhã, que Mia Couto estaria em João Pessoa, no Espaço Ciência, às três da tarde. Lamentavelmente, ela não poderia ir, devido a essa prisão que é o trabalho. Eu, depois de verificar que não havia urgências, assumi o risco de acumular o trabalho para fazê-lo na segunda feira, ou mesmo no final de semana.

Convidei Severiano para lá irmos escutar Mia Couto e ele aceitou. Curiosamente, estávamos Olívia, eu, Severiano e Miguel, há dois anos, escutando Mia Couto em Braga. Hoje, vencemos os 130 quilômetros até João Pessoa e chegamos ao tal Espaço Ciência. É um local belíssimo, projetado por Oscar Niemayer, com vistas para o mar.

Breve colocaremos umas fotografias desse sítio bonito e bem organizado, onde há exposições permanentes sobre ciência e um  auditório que acolhe músicos, teatro e outras manifestações. O edifício principal é uma jóia arquitetónica, algo que parece um disco-voador a pairar sobre o solo.

Esperamos um bocadinho, comprei dois livros do autor, e sentamos-nos a esperar sua chegada.  Com pouco, chegou Izabella, vinda de Recife. Organizou-se algo como uma conversa entre Mia Couto e a audiência. Uma conversa meio pautada por duas senhoras professoras de letras, que tentaram conduzir os assuntos academicamente.

Ele é um homem profundamente sensato e firme e delicado. Escapou às investidas – gentis, é verdade – de apreensão acadêmica de si mesmo contando histórias, como se as teses e perguntas não tivessem sido propostas. Não sei se a vasta maioria da audiência composta por estudantes, licenciados e doutores em letras percebeu o alcance das observações dele sobre ser biólogo e ser escritor. Argutamente, ele disse que entre escritores é somente biólogo.

Sábio indivíduo este, que rejeita as associações corporativas e o diz gentilmente, sutilmente. É complicado afirmar uma falta de pertença sem agredir os que se julgam uma igrejinha; a melhor forma é ser dois e dizer-se um, conforme a situação. Se ele dissesse eu sou escritor e vocês estudantes e professores seria indelicado.

E contou que se auto-batizou Mia porque quando era menino pequeno vivia entre os gatos. Pediu aos pais para escolher o nome e ficar com este e eles consentiram. Contou de seus embaraços com o português brasileiro, porque nem sempre as palavras significam as mesmas coisas. Contou várias coisas, enfim, despretenciosamente, por contar, sem querer causar espanto ou riso na audiência.

E afirmou-se muito mais contista que romancista, porque é muito esquecido e os personagens em um romance precisam de mais cuidados. Falou da literatura africana e particularmente da lusófona e de como gera estranheza um moçambicano branco. E, depois de muito falar e responder a perguntas – algumas delas somente afirmações e opiniões do perguntador – autografou livros.

As pessoas ajuntaram-se em torno à mesa em que estava, sem ordem qualquer, munidas dos livros. Ele foi autografando pacientemente, que isso é do ofício. Esperei, com uma calma que me surpreendeu. Chegou minha vez, pus nas mãos dele os livros, pedi-lhe que oferecesse um a Olívia e o outro a Izabella e disse-lhe tu reconheceste meu sotaque nordestino, há dois anos, em Braga. Foi na ocasião do lançamento do Jesusalém, na Centésima Página. Sim, bem que me pareceu que te conhecia de alguma forma. Aquela livraria é muito simpática. É verdade, muito agradável. Obrigado.

Uma gente proclítica e intransitiva.

Pronomes pessoais oblíquos querem mandar nos verbos, mas findam por deixar clara sua sucumbência a estes. Por serem oblíquos, não é o agente a comandar a ação, antes é a ação que consente em dar ao sujeito a posição de aparente comando, consente em que fique, obliquamente, na primeira posição, antesposto ao real.

Porém, manda o real e delicadamente permite ao sujeito – que já não é agente – que se insinue afirmando sua pessoalidade, obliquamente: Me dá! Curiosa afirmação de pessoalidade, que prescinde do pronome do caso reto: Me dá fica a parecer mais pessoal que Tu, me dá.

Intransitivos e, consequentemente, reticentes. Sem complementos, diretos ou indiretos, ação pura e, portanto, abstrata! Somos muito mais abstratos do que supomos, nós que nos queremos tão concretos e atuantes.

Queremos domar a ação, afirmar-nos principais em relação a ela, por-nos antes dela. Precisamos, pois, de uma ação sem complementos, aberta à compreensão das reticências, que precise antes da compreensão do sujeito para ser compreensão de qualquer outra coisa.

Assim, os complementos são um estorvo para nós. Eles podem conferir muita objetividade, muita concretude; podem reduzir drasticamente o campo aberto das reticências e as várias possibilidades da ambiguidade.

Se uma pátria – um pertencimento – é sua língua, somos, os brasileiros, isso mesmo: proclíticos e intransitivos.

A gente tem seus pertencimentos.

Acabo de ler uma das deliciosas crônicas de Joca Souza Leão, publicadas no sítio de internet pe360graus. O texto chama-se Pernambuco em Toledo e gira em torno a um episódio passado em 1976. Na ocasião, em Toledo, Joca reconheceu um conterrâneo pela gargalhada.

Pois bem, isso fez-me lembrar de uma coisa interessante e pensar em outras mil desimportâncias. Percebi, no ano que morei em Portugal, que consigo reconhecer brasileiros, principalmente nordestinos. Ora, isso é óbvio? Claro que é, porque passa por identidades culturais, mas são menos óbvias as percepções que as pessoas têm dessa possibilidade.

Por experimentação mesmo, uma e outra vez comentava dessa facilidade de reconhecimento. As reações mais interessantes – muito embora trata-se de uma obviedade – eram duas. Uns escutavam o comentário como se se tratasse da coisa mais exótica do mundo, ou de uma impertinência ou tolice imensas.

Outros, achavam que era a enunciação científica de uma coisa negativa, ou seja, da existência de signos identificadores que seriam basicamente maus-modos. Não é isso, todavia, pois essa percepção negativa é complexo de inferioridade e vontade de emulação do colonizado.

Uma vez que eu apontei uma tremenda falta de educação de um brasileiro, em uma crônica, não foi para dizer que o reconheci como brasileiro pelos maus-modos, foi porque o sujeito falava aos berros na Madeleine, que é uma igreja e em que havia uma missa naqueles exato momento. Identifiquei porque o fulano berrava no telefone celular em português brasileiro. Só não identificaria se fosse mais surdo do que sou!

Seria possível discorrer sobre os sinais que identificam um grupo e, no caso, os brasileiros e nordestinos, mesmo que não digam uma palavra. Mas, isso não é um ensaio científico, são impressões. Seria até arriscado enumerar os possíveis sinais, gesticulação, forma de andar, pois, de tão improváveis as distinções, pode parecer suposição arrogante.

Mas os sinais existem. E para capta-los basta conhecê-los e estar atento, seja involuntariamente, seja por esforço disciplinado. Percebo-os quase sem esforços, intuitivamente, embora isso seja o trabalho de muitos neurônios associando e dissociando memórias e conceitos.

Na verdade, extravagante mesmo seria se isso não fosse possível, porque então seria um mundo de homogeneidade avassaladora ou de pessoas absolutamente incapazes de identificações. E muita gente parece não gostar dessa carga de signos identificadores que carrega e expõe sem poder disfarçar.

São frequentes as figuras do brasileiro que não quer ser reconhecido, seja porque sua situação recomenda a assimilação, seja porque vive aquela presunção do cidadão do mundo que fala sem acento e veste-se como acha que um sueco da mesma idade se vestiria.

Bem, é verdade também que são numerosos os brasileiros que, ao contrário das figuras escamoteadas, afirmam-se efusivamente no estereótipo do simpático, falante, acolhedor brasileiro. Mas também esses, pouco importa que estejam representando um papel ou a si mesmos, estranham que possam ser identificados ainda que se calem ou não estejam com a camisa amarela da seleção nacional.

O fato é que se acredita na possibilidade do disfarce, suprema ingenuidade!

Presuntos cuzidos, no Makro, em Campina Grande, e outras divagações.

Quero deixar muito claro que não se trata de fazer troça ou de manifestar reprovação eloquente e acusadora de um erro ortográfico. Realmente, quanto a essas posturas, nunca me esqueci de um trecho magnífico de Eça de Queirós, a propósito das pessoas que se apressam a acusar imediato o erro ou pequeno desvio de linguagem dos outros. Apenas não lembro mais em que livro dele está!

Duas coisas, na verdade, despertaram-me a atenção. Primeiramente, uma evidente e engraçada desproporção entre o anúncio escrito e os produtos que estão na prateleira. As letras falam em presunto, onde quase só se vêm queijos.

Em segundo lugar, como é pouco importante o que está escrito. Essa seção nominada de presuntos cuzidos deve estar no mercado desde a sua inauguração. E o que importa é a identificação visual, ou seja, as pessoas vêm presuntos ou queijos e isso basta-lhes, não se detém a ler o nome da seção. Ou lêem e não percebem qualquer problema, é claro.

Algo semelhante acontece com os sinais de trânsito – também uma linguagem codificada em signos gráficos – a que poucos dão atenção e menos ainda prestam obediência. Não há um intuito deliberado de desobedecer-lhes as ordens e recomendações, há um desprezo, pura e simplesmente, como se ali não estivesse sinal algum.

É interessante – e aqui refiro-me ao Brasil mais propriamente – que a pouca importância dada ao escrito permeia todas as classes, inclusive aquelas que se supõem mais cultas. Nestas últimas, muitas pessoas lidam com a linguagem escrita como as senhoras dos países colonizados lidavam com os adereços que viam as colonizadoras utilizando. Uma caricatura, portanto.

Não consigo evitar falar desse aspecto particular, pois convivo com ele. No meio em que trabalho, a linguagem escrita é o meio principal e as pessoas nesse setor pretendem-se bem alfabetizadas. Prezam muitíssimo a correção ortográfica e não recuam diante da oportunidade de acusar sarcasticamente o erro de um outro. Todavia, a esse zelo ortográfico correspondem defeitos lógicos – sintáticos – imensos, falta de clareza, rebuscamento de farsa e uma fala de doer nos ouvidos. Os plurais – essa suprema inutilidade – foram sumariamente abolidos e essa sim é a grande reforma gramatical.

Ou seja, o sujeito não acha realmente o manejo correto da linguagem algo importante. Ele sabe, por outro lado, que deve aparentar dar-lhe importância e aí surge a caricatura, quer dizer, a imitação, que é uma embalagem vazia e exagerada de enfeites. Pois são precisamente embalagens vazias em caixas rebrilhantes o que se movimenta em tribunais e outras repartições públicas e nas corporações privadas.

O mesmo – a imitação de algo em que não se acredita verdadeiramente – dá-se em outras manifestações humanas. A mais interessante delas é a cortesia mal imitada, porque no fundo as pessoas não percebem qualquer utilidade nela e são profundamente descorteses. É notável que se chegou a ponto de propor uma identificação entre espontaneidade e maus modos, ou descortesia. E nessa identificação é que a maioria das pessoas realmente acredita.

Por tomarem como a mesma coisa a sinceridade, a espontaneidade, o estar-se à vontade, com o portar-se mal-educadamente, sem qualquer polidez, é que são incapazes de qualquer comportamento mais polido, que será apenas uma imitação de algo em que não se acredita.

A reserva, confundem-na com soberba ou arrogância. A discrição, com falta de espírito. Daí que quando o sujeito encontra-se em situação que ele acha recomendar alguma dessas posturas, assume-as falsamente, como uma criança mimada cala-se à força e sem saber porquê.

É uma carga de simulação muito grande para uma sociedade, essa que impõe uma dualidade quase platônica entre o real e o aparente. O real é a vida diária e o aparente é aquilo que se representa como sofisticação. Ora, assim vive-se preso a uma lógica de dominação muito perversa, pois implica na assunção de que o real é bruto e o aparente é só disfarce, portanto não é sofisticado nem útil.

Ora, se as maneiras e usos caricaturais não são aceitas e desejadas realmente, que sejam abolidas sem mais. Se é uma simulação escrever plurais e aventurar citações latinas, enquanto fala-se algo totalmente diferente, que sejam extirpadas as flexões de número e o latim de nada. Se os bons-modos são um esforço tremendo de simulação, que se coma com as mãos e se fale aos gritos. Se a questão é de espontaneidade, que sejamos espontâneos!

Saramago morreu.

José Saramago, já velho.

Um homem sóbrio. Morre sobriamente, em casa, aos 87 anos.

Há vinte anos, deparei-me com dois livros dele, na casa de minha avó. Eram O evangelho segundo Jesus Cristo e A história do cerco de Lisboa. Não me produziram uma imensa sensação de descoberta literária. Alguma surpresa com a forma, alguma satisfação com a abordagem.

Pus-me a ler tudo quanto encontrasse de Saramago há pouco tempo. E gostava de iniciar a leitura de um depois de terminar a de outro livro. Sempre fica a parecer que o estilo cria alguma familiaridade e que os livros todos são um. E acredito que sejam.

Não consigo dizer de outra maneira, embora vá soar ingênuo. O homem parece que não se vendeu. É isso, não se vendeu; dizer que era coerente é simples, pouco.

Acho que seduzi-me pelos livros do Saramago pelos por quê. E não acho que sejam por quê existenciais, mas mais ao rés-do-chão.

Há um ano, mais ou menos, descíamos, Olívia e eu, da Lapa a São Bento. Podíamos tomar o metro, mas resolvemos caminhar. Boa decisão, pois breve voltaríamos e o pequeno deleite de caminhar tornaria a ser interditado. Chegamos aos Aliados e lá estava a Feira do Livro do Porto.

Andamos a ver uns livros e, pelas tantas, Olívia ouviu anunciar que às cinco e meia José Saramago estaria lá e autografaria livros. Ficou entusiasmada e eu disse que era melhor averiguar, que podia ter escutado mal. Quem escuta mal, como eu, sempre cogita essa possibilidade. Mas, tinha ouvido bem, Saramago estaria ali mesmo.

Formou-se uma fila que logo estaria imensa. Olívia comprou dois livros e ofereceu-me um: Manual de Pintura e Caligrafia. Agora mesmo fui apanhá-lo na estante e vi a data precisa, escrita por ele, assim: 2.VI.2009

À nossa frente havia uns jovens eufóricos. Eram estudantes e alguns eram brasileiros. Fosse o Saramago ou a Madonna quem eles iam ver em breve, acho que dava no mesmo. O velho escrevedor perceberia esse entusiasmo que não era de letras, mas de gente conhecida. Percebeu melhor ainda porque um dos rapazes fez alguma pergunta que não se referia a livros. Olívia deve lembrar que pergunta foi, mas eu não lembro, não escutei.

Lembro que Saramago reteve o rapaz e, com um ar de muito cansado, perguntou-lhe se já tinha lido algum livro seu! Pergunta gentil, cansada e sem precisar de resposta.

Chegou minha hora de entregar-lhe o livro para autografar. Um aperto de mãos, boa tarde, boa tarde, obrigado.

Continuarei a pintar o segundo quadro, mas sei que nunca o acabarei. A tentativa falhou, e não há melhor prova dessa derrota, ou falhanço, ou impossibilidade, do que a folha de papel em que começo a escrever: até um dia, cedo ou tarde, andarei do primeiro quadro para o segundo e depois virei a esta escrita, ou saltarei a etapa intermédia, ou interromperei uma palavra para ir pôs uma pincelada na tela do retrato que S. encomendou, ou naquele outro, paralelo, que S. não verá.