Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

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Brasil: República que não é, democracia sem povo e estado sem direito.

A história do Brasil teve poucos momentos de poder político efetivamente escolhido democraticamente. O que se chama democracia representativa – abstraindo-se seu caráter meramente formal – vigorou de 1946 a 1964 e, depois, de 1989 até o presente.

Não incluo a república velha porque aquilo não era propriamente democracia, dadas as barreiras a impedirem a capacidade eleitoral ativa. Muito pouca gente votava, eis a questão.

Observa-se, nestes dois períodos democráticos, uma viragem muito interessante dos escolhidos para atenderem a interesses da maioria dos escolhedores. Essas eleições no sentido de se beneficiar número maior de pessoas não significaram necessariamente escolhas à esquerda. Significaram, basicamente, escolhas a rejeitarem duas coisas: o entreguismo e o rentismo.

Nenhum presidente brasileiro nos dezoito anos antes do golpe de 1964 e nestes vinte e quatro depois de 1989 foi de esquerda, no sentido próprio de fazer drástica redução da desigualdade na apropriação das riquezas produzidas. Por outro lado, nenhum, à exceção de Fernando Henrique Cardoso, foi entreguista, nem mesmo Jânio ou Collor, talvez por lhes ter faltado tempo.

Todavia, o pouco que se experimentou de democracia formal nestes dois períodos foi suficiente para revelar sistema profundamente desfuncional. A democracia, por pouco de ameaça que represente aos poderes reais numa sociedade massificada, sempre foi assumida pelo 01% como algo terrível. E, por outro lado, sempre teve significados cambiantes para os estratos médios que vivem das migalhas do 01% e têm tempo para se desinstruir cotidianamente.

Tanto a tenacidade, quanto o êxito obtido por este esforço do 01% são coisas merecedoras de estudo, no caso brasileiro. Claro que parte do êxito de termos democracia deformada advem dela ter sido desenhada com pontos de fuga sob medida para se evitarem seus aperfeiçoamentos e manutenção. O modelo jurídico do estado brasileiro é essencialmente anti-democrático mas com eleições.

Dois fenômenos, cada um capitaneado por certo grupo de interesses, anunciam a erosão que pode levar à ruína do que nasceu para viver pouco. De um lado, dentro do próprio estado, há corporações que não dão contas a ninguém, agem em benefício próprio e dos seus mandatários e detém poder formal e material. São as magistraturas judicial e do ministério público, entidades destituídas de legitimidade democrática que agem em clara exorbitância de seus poderes.

Essas corporações são representantes do conservantismo, papel que desempenham até desinteressadamente em alguns casos, por inércia mesmo, isso que de tão importante é reiteradamente negado. Existe inércia social, assim como existe acaso, imprevisão e impossibilidade de controle.

Além dos componentes destas corporações serem recrutados maioritariamente nas classes médias-altas, eles sentem-se devedores de ninguém, porque ignoram que nascer em certo estrato, numa sociedade profundamente desigual, já é dever a todos os demais, acima e abaixo. É interesaante notar que a dinâmica corporativa estatal é tão forte que um e outro egresso de classes mais baixas rapidamente torna-se mais conservador que o conservadorismo, no que ajudam muito o desejo de disfarçar-se e de mostrar-se mais realista que o rei.

Numa democracia formal, em que poderes legislativo e executivo são eleitos por sufrágio semi-universal e que proclama princípio de igualdade ante a lei, ser conservador é precisamente negar aplicação às leis, conforme caprichos mal explicados e momentâneos: precisamente o que se tem visto fazerem o judicial e o ministério público, no Brasil.

A resistência do 01% e de partes das classes médias volta-se contra o império da lei em sentidos formal e material e contra o princípio de igualdade de todos em face da lei. Obviamente, seus instrumentos para violar os dois princípios são as corporações que lidam com aplicação de leis, que se convertem em fazedores de leis caso a caso. Aparente paradoxo…

Fosse o Brasil sociedade com mais que meros quinhentos anos de história, a violação das regras por quem as deve aplicar assustaria as pessoas. Fôssemos mais honestos e menos hipócritas, defenderíamos ditadura aberta, a rejeitar os disfarces e a farsa dos poderes contidos em limites bem delimitados. Mas, somos o que somos, uma sociedade que percebeu mais que em qualquer outra parte a utilidade da mentira.

Daí que temos textos a dizerem haver poders harmônicos e com atribuições específicas, quando na verdade há sistema com pontos de escape muito bem estabelecidos para violar-se a democracia sob aparência de a exercer.

De outra banda, a erosão da democracia formal advem de manifestações que supostamente a realizam à letra. Grupos que à origem nada têm a ver com política entram no jogo político a tentar moldá-lo aos seus preconceitos morais e religiosos. Subvertem o jogo democrático porque instilam no debate público coisas que somente se relacionam com o privado.

O privado somente interessa ao público no que tange a defender liberdades fundamentais que não devem ser sacrificadas a bem de supostos interesses maiores. A entrada no jogo político de grupos cristãos organizados em torno a regras de cunho religioso subverte a essencia do estado de direito que protege o indivíduo desse tipo de prescrição a que somente se adere por vontade própria.

O estado supostamente defende as liberdades de culto, de ir e vir, de casar-se ou não e com quem se quiser, de trasladar patrimônio, de não pagar tributos para subvencionar cultos religiosos, enfim, um plexo mínimo de coisas com que a maioria pode estar de acordo. Ao entrar em cena a pressão política organizada dos cristão, o jogo sai das regras porque as opções condicionam-se por variáveis que não se podem considerar comuns a todos.

Com relação a liberdades civis, o debate tende a tornar-se o mais estúpido possível e percebe-se a insinuação da similitude do religioso ao científico. Essa similitude existe e evidencia que ambos devem ser rejeitados. Não se cuida de religião nem de ciência quando o estado garante às pessoas que se unam a partir de um contrato que prevê várias coisas, entre elas a divisão e a transmissão de patrimônio: cuida-se da liberdade de unir-se e nisso não importam religião nem ciência.

É claro que o avanço político dos grupos de pressão cristãos no Brasil é questão de poder. As religiosidades de matriz greco-judáicas são todas bem talhadas para o jogo de poder, porque são normativas e esquematizadas na lógica do código e do tribunal. Poucas coisas são mais parecidas que uma religião greco-judáica e um qualquer poder judicial. No mundo inspirado pela tragédia do encontro de semitas e gregos, o direito e a religião são faces de um mesmo plano.

Crença e causalidade. Religiosidade e ciência.

Não há, no fundo, incompatibilidades entre os sistemas baseados nas crenças e aqueles baseados nas causalidades, exceto por que os primeiros evitam as armadilhas das regressões infinitas. Não há, porque ambos servem-se de crenças e de afirmaçõs de causalidades, em cadeias maiores ou menores.

O dito acima não se confunde com postular a compatibilidade absoluta entre religiosidades e ciência ou filosofia. São afirmações diferentes, pois pode haver sistemas filosóficos focados mais nas relações que nas causalidades e crenças.

É claro que penso na assertiva de Hume, agora: as relações são exteriores aos seus termos. Os termos, aqui, são quanto se capta sensorialmente, quanto de percebe de fora como informação. Mas, são também as causas. O todo, que seria uma relação, muito provavelmente está para fora, ou para além do simples conjunto dos termos em comparação, ou seja em dinâmica relação.

Crença e desejo estão por todos os lados, enervados, nas postulações religiosas e nas científicas, a condicionarem as causalidades enunciadas em cada segmento componente de uma estrutura teórica.

Os triviais – e repetidos – exemplos são os melhores. A indução clássica de que amanhã haverá uma aurora decorre de hoje a termos visto e ontem também e antes de ontem e, aparentemente, desde sempre. Ora, o que há é a crença na aurora de amanha, porque a de hoje não é, de maneira alguma, um antecedente causal lógico válido para assumirmos que ele haverá amanhã.

O nascer do sol de amanhã, quando e se ele ocorrer, será o do hoje de amanhã, nunca uma decorrência causal de ter ocorrido antes. Ou seja, a relação entre as auroras e suas sucessões estão muito além do aprisionamento dela a partir de seus termos isolados e de alguma aparente causalidade.

Visto por outro ponto, a crença está antes e depois da relação ou do postulado. Antes como axioma e depois como resultado efetivamente produzido e projetado, ou seja, não espontânea resultante de um método científico. Talvez fosse mais adequado nomear a crença ao depois como desejo, mas isso afastaria a percepção de circularidade que permeia grande parte dos raciocínios e enunciações.

Os modelos causais tendem a serem circulares na medida em que os pressupostos confundem-se com as conclusões ou finalidade, se assim se preferir chamar. O sistema aristotélico das causalidades inicial, formal, material e final é, assim, nitidamente autoreferente, circular e tendente ao sofisma de indução. Essa mesma estrutura básica ampara as religiosidades de matriz grega, persa e judaica.

Se as relações estão fora de seus termos, mais que a conclusão empirista clássica da redução ao dado, temos relações autônomas, sucessivas horizontalmente ou mesmo paralelas. Dissociadas, portanto, da clássica lógica da imputação, que é, afinal, uma lógica da formação do juízo. Ora, uma lógica da construção do juízo não se faz sem altas doses de crença.

Assim, talvez seja válido afirmar que a ciência e a religiosidade operam segundo o mesmo modelo, com vantagens para a religiosidade, que não precisa fazer esforços para disfarçar a crença.

Controle social da sexualidade: a ciência médica é mais violenta que o antinatural cristão.

A ciência médica é modelo de controle social da sexualidade pior e mais perverso que as postulações axiomáticas do antinatural cristão.

O antinatural oferece à luz do dia toda a sua não significação, porque o natural não é uma afirmação a que se possa contrapor outra. Era, portanto, um prisão muito menos opressiva que o imperativo científico.

O antinatural, inclusive, era prisão clamante por Eros, apta a despertá-lo, como todas as proibições destituídas de um real sentido perceptível. Por ser impossível, sempre foi possível e reclamou vigilâncias meramente formais.

A prisão técnica clínica, de ciência higiênica, serve-se de cadeias mais fortes. Seus postulados, independentemente de serem falsos ou verdadeiros, carregam em sí uma plausibilidade que o discurso científico deu-lhe.

A patologia amedronta muito mais que o antinatural. Signo da superioridade do modelo clínico é a aproximação que certos extremismos fazem dele, tentando agregá-lo ao antinatural, como reforço.

O modelo controlador de sexualidade a partir da ciência médica oferece a cura, enquanto o modelo cristão do antinatural oferece a salvação, se o praticante desviado optar pelo abandono do antinatural. É interessante perceber que certas religiosidades neo-pentecostais partiram para a assimilação do modelo clínico, o que se evidencia por vários sinais.

São comuns as abordagens da homossexualidade, pelos neo-pentecostais, como resultado da influência de demônios, que devem ser retirados. Ora, a possessão demoníaca é de claríssimo paralelismo com a infecção por agentes patogênicos, a serem combatidos para que se retirem do organismo infestado.

A infestação por demônios, assim como por vírus ou bactérias, insere um elemento estranho à subjetividade do infectado, elemento essencial ao modelo do antinatural. Esse ponto permite ver claramente as divergências dos dois modelos e as soluções por eles propostas.

Enquanto um postula a causa única e exclusivamente na vontade individual, o outro inclui elementos externos, embora não afaste totalmente o elemento subjetivo. Uma circunstância, todavia, põe em contato os dois modelos, que rejeitam, ambos, a causa originária da homossexualidade na conformação genética.

O modelo hoje adotado por inúmeras denominações neo-pentecostais consegue ser um hibridismo com efeitos piores que os resultantes das formas originais de que se serve. Ele controla e pune duplamente e fecha as oportunidades de excusa da culpa. Se, por um lado, o possuído não tem culpa da escolha dos demônios, ele a terá se os meios de tratamento – a terapêutica do exorcismo – não der resultados. É como se o doente fosse culpado pela ineficácia da terapia, algo muito caro à psiquiatria e à psicologia.

Assim, o discurso científico presta grande ajuda ao cerceamento de liberdades e serve às religiosidades mais obscurantistas…

Façam as pazes com o irracional!

Ontem, tive uma conversa que me deixou impaciente, um pouquinho desconcertado e com medo de estar a tornar-me um estilita. Meu interlocutor anunciou ter crenças espiritistas e pôs-se a falar nas tais crenças, que não são novidades para mim. Até aí, tudo está muito bem, que me interesso profundamente por todos os assuntos de religiosidades.

O problema é basicamente o de sempre: o proselitismo. Desta vez, acrescido de uma irritante cegueira e perda afirmativa da grandeza, da poesia que as promessas mais extraordinárias trazem consigo.

Tudo quanto é religiosidade por aqui confunde-se bastante com os intervalos comerciais d´alguma emissão televisiva. Não se conversa sobre o assunto, parte-se para cima do interlocutor, a tentar convencê-lo de toda uma série de axiomas improváveis, que invariavelmente trarão benefícios palpáveis ao aceitante. Ora, isso é economia religiosa!

Muito contraditoriamente, os manejadores e propagandeadores de axiomas pretendem estar a lidar com as coisas mais lógicas do mundo, pretendem-se fortes em cientificidade e moralismo, afinal todo ele axiomático! Todavia, o axioma é um campo para que moralismos, lógicas e ciências não foram chamados; eles simplesmente não precisam disso.

No caso específico, meu interlocutor bombardeava-me com moralismo pitagórico elementar, ou seja espiritismo, como se fosse a maior descoberta, a mais racional proposição que uma pessoa pudesse fazer. Meia dúzia de conclusões silogísticas feitas a partir de premissas absolutamente arbitrárias. Essas premissas, claro, eram as vontades do Deus, descobertas sabe-se lá como.

Que se suponha conhecer os desígnios d´algum Deus – de um todo-poderoso – não é problema, embora seja uma evidente profanação. Que se ponham os descobridores a jactar-se da posse dessa informação, a extrair conclusões ajudados por Aristóteles, vulgarmente, e a tentar impor isso aos outros já fica bastante cansativo e agressivo.

Toda essa gente reduz os Deuses a si próprios, humanizando-os sem compreenderem que o estão a fazer. Melhor fariam se seguissem os belos exemplos do paganismo helênico e pusessem seus Deuses entre si, em contato próximo com as pessoas,  com as águas e as terras, com vontades, raivas, invejas, vinganças, assim mesmo, indisfarçadamente.

Mas, não. Seus Deuses, de quem conhecem as mais íntimas vontades, são únicos, absolutos, imortais, ubiquos, plenipotentes, eternos, tudo isso que uma mente mais calma percebe ser totalmente incompatível com o conhecimento dos mesmos.

Já renunciaram à mais difícil tarefa de tentar aproximar-se de seus Deuses por meio de mitologias belas e repletas de simbolismos que, no fundo, são um imenso reconhecimento da natureza impenetrável da divindade. Já não constroem para seus Deuses histórias cheias de idas e vindas, de mitos de criação, de fertilidade, de alternância da fartura e da falta. Já não se acredita a sério nem mesmo no Príncipe do Mundo!

Os mascates das religiosidades trazem seus bauzinhos de vulgaridades que chamam de leis divinas, mas que Deuses se ocupariam dessa trivial atividade legislativa? Que Deuses seriam assim tão humanos e simplórios? Que Deuses tão vulgares seriam esses que produzem axiomas para serem bases de silogismos tão formalmente certos?

Pois o meu interlocutor, com a maior naturalidade e auto-confiança do mundo, dizia-me que o pacote que me tentava vender não era uma religiosidade, era uma coisa científica e filosófica! Meu Deus, uma coisa científica? Sim, uma coisa científica, certa, lógica, moral, retributiva por meio de sucessivas depurações.

Eu procuro não agredir as pessoas voluntariamente, desde que perceba que elas não agem deliberadamente para agredir-me. Esse é um esforço que me parece bem tentar sempre. Digo isso para explicar porque não perguntei ao meu interlocutor porque ele tinha feito do seu Deus um objeto de investigação e não um Deus.

E também contive-me para não perguntar-lhe porque têm tanta vergonha de chamar uma religiosidade pelo nome correto, ou seja, porque precisam chamá-la de ciência, melhora algo? Estão assim tão presos àquela anacrônica mitologia científico-positivista do século XIX?

E, como, embora não seja religioso, tenha lido um pouco as escrituras judáicas e cristãs, tentei ser simpático e desviar um pouco a conversa dessa ciência anti-científica. Sem resultados, todavia. Meu interlocutor acusou esses trechos de mitos infantis! Sim, mas ele e sua ciência moral estão totalmente amparados nesses mitos. Ele propriamente é que não poderia postular a inutilidade e puerilidade dessas passagens simbólicas.

Essa gente quer apreender a mortalidade ou a imortalidade com lógica! Quer transforma-las em teorias simples de custo-e-benefício, em justificações morais! Supremos e desesperados loucos. Vaidosos fautores de leis divinas e morais do dia-a-dia. Essa gente acredita mesmo é no Código de Processo Civil e fala em Deus.

Ratzinger faz política na Espanha.

O Bispo alemão de Roma está na Espanha. Hoje, em Santiago de Compostela, amanhã estará em Barcelona, para consagrar a Sagrada Família, a obra bela e nunca terminada de Gaudí.

Ele reclamou de um secularismo agressivo que haveria em Espanha, um comentário, a princípio, sem qualquer sentido. Se com isso quis dizer que o número de fiéis católicos praticantes recua muito, a declaração começa a ser perceptível, pois é uma constatação.

Todavia, resta algo de estranho na declaração, pois a melhor forma de seduzir não é reclamar da falta de seduzidos e, sim, buscá-los. Fica a parecer excesso de arrogância, como se estranhasse que os espanhóis estivessem a afastar-se, movidos por burrice, supõe-se, daquilo que seria uma adesão óbvia.

Pode ser abordada por outro viés, também. O Bispo de Roma pode estar a reclamar do Estado e do Governo espanhóis, que ele acha obrigados a promoverem uma certa religiosidade. Sucede que o Estado espanhol é laico e assim a declaração é puramente política. Sendo política e vinda de um estrangeiro e ademais ele mesmo Chefe de Estado, parece uma intromissão indevida nos assuntos espanhóis. Uma intromissão contrária à própria ordem constitucional, inclusive.

Talvez fosse melhor o cardeal Ratzinger limitar-se a uma das esferas, a religiosa ou a política. Poderia tentar a sedução da religião que representa, pois há elementos realmente sedutores nela. Poderia transcender-se, ou seja, ao político culto que é, e voltar-se para a promessa da imortalidade, que é muito superior à da justificação e teve em Espanha seguidores profundos.

Poderia falar em Teresa D´Ávila ou em João da Cruz, poderia falar na extrema poeticidade desses místicos ávidos de imortalidade. Poderia falar da ressurreição dos vivos, da transformação, da graça, da escolha, do reino de Deus.

Poderia, por outro lado, ser apenas político e chamar seus seguidores a pressionarem o Governo a dar-lhes apoio explícito e formal e a por na ilegalidade as diferenças. Criaria mal-estar por conta da flagrante e indevida intromissão, porém contaria com o provável silêncio complacente do Governo, desde que não se excedesse muito.

Não devia era lastimar-se de uma secularização agressiva, coisa intangível se dita assim de maneira ambígua. Quer parecer que a religiosidade católica é alvo de alguma perseguição? Buscam tomar-lhes os bens? Afinal, de quê reclama Ratzinger, da perda de fiéis ou da perda de privilégios estatais?

Atire a primeira pedra aquele que nunca tentou.

E se, somente se, a religião realmente admitisse que não tem todas as respostas?!?! É por isso que é tão importante essa tal de inclusão digital, e a pulverização dos meios de comunicação de massa. Nada de ficar tudo nas mãos, dos Marinho, dos Civita, dos Macedo, dos…

"-Eu não tenho todas as respostas, tente o google."

"-Eu não tenho todas as respostas, tente o google."

Dom Aldo Pagotto, um assessor de Torquemada misturado com filósofo de botequim.

O Bispo de João Pessoa, na Paraíba, Dom Aldo Pagotto, dispôs-se ao ridículo papel de gravar um vídeo – está no youtube, para quem quiser ver e ouvir tolices em tom solene – em que se diz preocupado com a candidata Dilma Roussef, que pretende alterar as bases do cristianismo e da família.

Não sei em que proporções Dom Aldo mistura presunção, ignorância e má-fé, que todos esses fatores podem estar presentes ao mesmo tempo. Na verdade, os dois primeiros geralmente apresentam-se em relações mútuas de causa e efeito. O terceiro é uma possibilidade.

Dizer que a candidata quer alterar as bases do cristianismo é presunção dele a supor uma presunção enorme dela. É ignorância profunda dele sobre as proposições de uma candidatura que não dedicou uma mísera linha de seu programa de governo a temas religiosos.

Dom Aldo joga ao lado daqueles que deixaram há muito as preocupações que caberiam a um Príncipe da Igreja, para servir a uma estratégia eleitoral baseada no terrorismo obscurantista que ficaria bem situada cronologicamente há mil anos. Na verdade, isso é preciosismo meu, porque atitudes como essas são deslocadas de historicidade. Dom Aldo poderia integrar a recente Igreja Argentina, aquela que abençoou e tomou parte ativa ao lado de uma ditadura que matou 30.000 pessoas, incluindo uma e outra freira francesa.

O único programa de governo que mencionou algum aspecto sensível às religiosidades foi o do PV, partido que é legenda anexa ao PSDB, pelo qual disputou o primeiro turno a candidata Marina Silva. O programa defendia a ampliação das possibilidades do aborto, o que é curioso em proposta de uma candidata evangélica, que provavelmente não leu programa algum.

Os programas de governo de Dilma Roussef e de José Serra simplesmente não falam do assunto aborto, tema subitamente alçado aos píncaros da importância para os destinos do país! Os propagandistas do Serra resolveram fazer disso um convite à radicalização e à abordagem da eleição a partir de um viés fundamentalista.

Isso prova a essencial indignidade e o oportunismo rasteiro da campanha de José Serra, que ataca Dilma por algo que ela não propôs! Ou seja, para acusar basta querer fazê-lo e ter o auxílio de alguns Aldos Pagottos, não sendo necessário que a acusação tenha qualquer pertinência com a realidade.

O mesmo Dom Aldo, que se acha importante a ponto de ler um comunicado com voz de locutor de rádio, em que anuncia que Dilma visa a por em risco as bases do cristianismo, ou seja, superestimando a si e ignorando o programa da candidata, é objeto de uma carta escrita por vários leigos, religiosos, diáconos e presbíteros, dirigida ao Núncio Apostólico no Brasil e ao Presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil.

Na carta, os signatários apontam, basicamente, que Dom Aldo tem reiterados e documentados atos de preconceito em relação aos pobres. Que tem atitudes de desdém ou de humilhação relativamente a todas as iniciativas que se refiram a comunidades pobres. Que viola os deveres de discrição de prudência, indo a meios de comunicação de massas tratar de assuntos que não se referem diretamente à Igreja Católica.

É curioso que esse tipo de sacerdote caracterizado pela aversão aos pobres e subserviência aos mais ricos geralmente justifica-se pela separação das instâncias religiosa e política. Não obstante, em flagrante contradição, eles prestam-se a papel político ativo. Ou seja, eles, na verdade, não acreditam na separação que preconizam, apenas utilizam-na como desculpa.

Frei Betto sobre Dilma.

Reproduzo adiante artigo de Frei Betto sobre Dilma Roussef, publicado na coluna Tendências/debates, da Folha de São Paulo:

Conheço Dilma Rousseff desde criança. Éramos vizinhos na rua Major Lopes, em Belo Horizonte. Ela e Thereza, minha irmã, foram amigas de adolescência. Anos depois, nos encontramos no presídio Tiradentes, em São Paulo. Ex-aluna de colégio religioso, dirigido por freiras de Sion, Dilma, no cárcere, participava de orações e comentários do Evangelho. Nada tinha de “marxista ateia”.

Nossos torturadores, sim, praticavam o ateísmo militante ao profanar, com violência, os templos vivos de Deus: as vítimas levadas ao pau-de-arara, ao choque elétrico, ao afogamento e à morte.

Em 2003, deu-se meu terceiro encontro com Dilma, em Brasília, nos dois anos em que participei do governo Lula. De nossa amizade, posso assegurar que não passa de campanha difamatória – diria, terrorista – acusar Dilma Rousseff de “abortista” ou contrária aos princípios evangélicos. Se um ou outro bispo critica Dilma, há que se lembrar que, por ser bispo, ninguém é dono da verdade.

Nem tem o direito de julgar o foro íntimo do próximo. Dilma, como Lula, é pessoa de fé cristã, formada na Igreja Católica. Na linha do que recomenda Jesus, ela e Lula não saem por aí propalando, como fariseus, suas convicções religiosas. Preferem comprovar, por suas atitudes, que “a árvore se conhece pelos frutos”, como acentua o Evangelho.

É na coerência de suas ações, na ética de procedimentos políticos e na dedicação ao povo brasileiro que políticos como Dilma e Lula testemunham a fé que abraçam. Sobre Lula, desde as greves do ABC, espalharam horrores: se eleito, tomaria as mansões do Morumbi, em São Paulo; expropriaria fazendas e sítios produtivos; implantaria o socialismo por decreto…

Passados quase oito anos, o que vemos? Um Brasil mais justo, com menos miséria e mais distribuição de renda, sem criminalizar movimentos sociais ou privatizar o patrimônio público, respeitado internacionalmente.

Até o segundo turno, nichos da oposição ao governo Lula haverão de ecoar boataria e mentiras. Mas não podem alterar a essência de uma pessoa. Em tudo o que Dilma realizou, falou ou escreveu, jamais se encontrará uma única linha contrária ao conteúdo da fé cristã e aos princípios do Evangelho.

Certa vez indagaram a Jesus quem haveria de se salvar. Ele não respondeu que seriam aqueles que vivem batendo no peito e proclamando o nome de Deus. Nem os que vão à missa ou ao culto todos os domingos. Nem quem se julga dono da doutrina cristã e se arvora em juiz de seus semelhantes.

A resposta de Jesus surpreendeu: “Eu tive fome e me destes de comer; tive sede e me destes de beber; estive enfermo e me visitastes; oprimido, e me libertastes…” (Mateus 25, 31-46). Jesus se colocou no lugar dos mais pobres e frisou que a salvação está ao alcance de quem, por amor, busca saciar a fome dos miseráveis, não se omite diante das opressões, procura assegurar a todos vida digna e feliz.

Isso o governo Lula tem feito, segundo a opinião de 77% da população brasileira, como demonstram as pesquisas. Com certeza, Dilma, se eleita presidente, prosseguirá na mesma direção.

Fanatismo religioso e política. Comentário ao de Julinho da Adelaide.

Acender as fogueiras é fácil e bonito, difícil é apagá-las, depois.

Nós temos, no Brasil, um défice de cidadania enorme, então as pressões sociais passam por canalizações corporativas. As religiões, que são corporações, entram no jogo para canalizar um tipo de pressão.

As corporações religiosas voltam-se para a obtenção de poder social, mais ou menos suave, consoante a época. Quando estão seguras de deter uma suficiente parcela de poder social, suas aventuras explícitas no âmbito político são mais discretas e pouco frequentes.

Por exemplo, em épocas de seguro poder social do catolicismo romano, no Brasil, não precisavam seus hierárcas atuarem diretamente no espaço político. Podiam fazê-lo no segundo plano, certos de disporem de robusto controle.

Á medida que recua seu poder social, precisam investir, primeiramente, em linhas semelhantes às dos que avançam. Assim, surgem, por exemplo, manifestações como a canção nova, um monofisismo de baixo nível. É, em poucas palavras, identificar uma disputa e optar por oferecer o mesmo que os que avançam.

O mercado das almas é daqueles com propensão marginal ao consumo quase ilimitada, e daí é possível essa pulverização enorme que se observa. Quase tudo que se ofereça é passível de ser adquirido, desde que tenha uma e outra tinta de novidade, que nesse âmbito não se está imune à moda.

Acontece que o Brasil é tremendamente liberal em termos sociais, ou seja, é tremendamente dissoluto de costumes. Convivem formas estritas e rigorosas com discursos estreitos, em um paradoxo aparente. O ponto de articulação e a explicação desse aparente paradoxo é a hipocrisia. Em doses cavalares, como as temos, ela desempenha a função do óleo que suaviza o contato das engrenagens.

Uma contraposição possível, no sentido de reduzir essa dispersão religiosa, seria o estímulo a uma religião cívica nacionalista, um pouco à semelhança da simbologia varguista. Claro que isso tem os riscos evidentes da sua semelhança com os nacionais socialismos, mais frequentemente chamados por seus nomes comerciais de fascismo e nazismo.

Essa enorme pulverização tem alguma vantagem e vários riscos. A vantagem parece-me residir em que torna improvável o triunfo dominante de uma só corporação, o que permite a continuação da dinâmica social. As desvantagens encontram-se na indigência intelectual e moral que está por trás da possibilidade de tantas denominações, tão assemelhadas, que à lupa, parecem consensuais.

Ora, o consenso é maior quanto menor for o conteúdo em torno a que se forma. A idéia mais amplamente sedutora das almas por força será a mais vazia, menos nobre, menos sofisticada, mais radical, menos sutil. Com massas – em todas as classes, sempre é bom destacar – tão aproximadas por pontos de comunhão enormemente singelos, que esperar senão movimentos de hordas volteantes e erráticas?

A identidade religiosa só entra no jogo político de forma normal quando ela é o catalisador de uma identidade nacional. Daí que, na Irlanda, por exemplo, faz sentido afirmar-se católico em contraposição a reformado, porque isso é afirmar-se irlandês em contraposição a britânico. Assim, na verdade, o religioso é quase puramente político e nacional, na sua afirmação exterior. Claro que isso não impede que o religioso seja propriamente uma questão de relação com a divindade, para cada pessoa em sua experiência.

Mas, quando o religioso, mormente tão despido de reais conteúdos religiosos, mete-se no político sem desempenhar esse natural papel de identificador nacional, ele é um elemento estranho e desnecessário ao palco político. Prestará um profundo deserviço, confundindo coisas que não são iguais, nem apreensíveis a partir da mesma metodologia.

No Brasil, a mais forte característica social é a confusão entre o privado e o público, no que se refere ao tratamento do público. A inserção das religiosidades nesse ambiente piora as coisas, já ruins, pois insere o meta-privado na discussão do público!

Os políticos, ao contrário do que se convencionou crer, não calculam bem os riscos que tomam. Ou só os calculam bem no curtíssimo prazo, ou, ainda, se os calculam bem são profundamente irresponsáveis e pagam para ver. Com relação à incitação religiosa, eles portam-se como o sujeito que descobriu uma nova bomba e não vai deixar de usa-la sob qualquer argumento, embora saiba a terra arrasada que ela produzirá.

Precisamos do Grande Juliano. Ou, não precisamos de ativismo religioso na política.

Minha única fonte é eruditíssima e bem escrevente: Gore Vidal. Inclusive, aproveito a oportunidade para sugerir a quantos gostem de boa literatura esse magnífico romance histórico: Juliano.

O Imperador cresceu em meio a padres e monges ortodoxos e teve grande ocasião de observar-lhes as intrigas e, inclusive os constantes assassinatos a que se entregavam mutuamente as correntes divergentes do cristianismo triunfante. Foi educado no cristianismo que, a partir de Constatino, não viu mais restrições para conquistar as almas das pessoas e os postos da burocracia imperial.

Juliano voltou-se ao paganismo, até de forma mística, ele que era um iniciado nos mistérios greco-egípcios. Tentou defender o paganismo da extinção e das perseguições violentas dos cristão, que, quando não tornavam templos em igrejas, simplesmente punham-nos abaixo.

Pelos cristão – a quem chamava galileus – nutria algo como um desprezo estóico, mas não tomou atitudes contra eles, não os perseguiu. Parece que sentia repugnância por perseguições e dogmatismos mesquinhos. Trabalhou na reconstrução de vários templos, alguns deles jóias arquitetônicas então em ruínas.

Cercou-se de filósofos e místicos o que foi até motivo de chacota, com relação a místicos como Máximo. Não laborou para impor o paganismo, nem para destruir o cristianismo, apenas para que fosse possível a alguém cultivar suas crenças e não apenas uma só crença autorizada.

Ou seja, Juliano não instilou a religião na administração do Estado, embora não escondesse a sua própria. Nesse sentido, foi um exemplo de magnanimidade e laicismo raríssimo, notadamente em contraste à intolerância cristã que se percebia por toda parte e em todas as inúmeras intrigas que permeavam a igreja e a burocracia.

Claro que isso daria errado e que esse filósofo, estóico, místico e grande soldado iria perecer. O preconceito, a mesquinhez e o dogmatismo reunem as melhores condições para triunfar, quase sempre. Juliano foi assassinado em combate, ao que tudo indica lancetado no abdome por um soldado galileu ressentido, de suas próprias legiões.

Recentemente, a grande jogada eleitoral que foi a candidatura de Marina Silva, a partir de uma plataforma vazia, de suposto ecologismo, revelou um aspecto perturbador, subjacente à enorme votação que ela teve. Marina é cristã reformada neo-pentecostal. E ela obteve, evidentemente, uma expressiva votação de motivação religiosa, na esteira daquela lógica que se explica muito bem pelo lugar-comum crente vota em crente.

É claro que nas condições temporais, espaciais, sociais, econômicas, políticas e institucionais que temos, isso é uma tremenda estupidez. Porque a fanatização religiosa não cumpre nenhum grande papel histórico, não é elemento catalisador de forças para uma cruzada contra infiéis que estejam a ameaçar-nos do outro lado de alguma fronteira.

Na verdade, é a perda da ocasião de aumentar-se o nível de politização da sociedade, o que é desejável porque política é opção pública. Sendo o Estado laico, não é de mínima importância que um candidato seja crente ou descrente e é a consagração da falta de critérios votar-se porque alguém segue ou afirma seguir as mesmas regras que supostamente devem dirigir as relações humanas com alguma divindade.

Importante é que se discuta para onde irão os dinheiros públicos, o que fará o poder público, o que ele permitirá, incentivará ou proibirá. Quanto ele se endividará e para quê. Como ele assegurará a subsistência das pessoas na velhice. Como ele cumprirá suas obrigações constitucionais de prover saúde e educação.

Ora, a inserção da identidade religiosa no debate político é um risco que estão a assumir para lograr efeitos imediatos. Uma estratégia de despolitização e imbecilização perigosíssima a longo prazo.

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