Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Uma sessão espiritista tumultuada, em Anus Mundi.

Por Sidarta

Lamento informar, de antemão, que alterei os nomes de alguns dos personagens dessa estória, que é real, pois penso que ainda não devem estar todos já mortos. Peço perdão às famílias dos personagens, se forem reconhecidos, mas não resisti em não contar esse fato histórico, ilustrador e divertido que ouvi de um conhecido anusmundense. Agradeço também à Sra. Gautama pela ajuda na escolha de alguns nomes para os personagens.

Era um mês de dezembro no fim dos anos 1960’s e fazia um calor de arrombar em Anus Mundi, interior do Piauí, em uma tarde de sábado… e Madame Otília (ex Severina Barracão, na juventude) estava se sentindo muito ocultista.

Ela tinha colocado um vestido branco longo, todo solto e esvoaçante, e a sala da sessão estava iluminada por velas, cada vela cuidadosamente enfiada em uma garrafa de cana. Havia três outras pessoas na sessão de hoje.

Dona Carminha, com um boné verde escuro do já insipiente movimento ambientalista; Seu Otacílio, fino e pálido, com olhos meio embaçados; e Maristela Pereira, de cabelo cortado recentemente em Teresina no estilo “Hoje, na Avenida”, no salão de dois jovens e promissores cabeleireiros, e que era convencida de que ela própria tinha profundidade ocultista ainda não explorada.

A fim de melhorar os aspectos ocultos de si mesma, Maristela tinha começado a usar e abusar de sombras verdes e de bijuterias “de prata legítima” adquiridas em uma tal de “feira do Paraguai”, em uma viagem de iniciação que fez a um grande centro esotérico em Brasília. Ela achava que era sexy e gostava também de ser vista como romântica, e até seria se perdesse uns trinta quilos.

Estava convencida de que era anoréxica porque cada vez que se olhava no espelho ela via uma pessoa gorda.  Como anoréxica, tinha lido que devia sempre comer um pouquinho mais.

“Vocês podem ficar de mãos dadas?” perguntou Madame Otília. “Devemos fazer silêncio. O mundo dos espíritos é muito sensível a vibrações.”

“Pergunta se Ronaldo já está por perto”, disse Dona Carminha.

“Espere um pouquinho, querida, fique tranqüila enquanto eu faça o contato.”

Madame Otília tinha deduzido, através de anos de experiência “nos mistérios” em muitas localidades do Piauí e do Maranhão, que dois minutos era o tempo certo para sentar-se em silêncio, esperando para o “mundo dos espíritos” fazer contato. Mais do que isso e os clientes ficavam indolentes, menos do que isso e eles sentiam que não estavam recebendo pelo que estavam pagando.

Na hora H, Madame Otília jogou a cabeça para trás com os olhos quase fechados.

“Ela agora vai, minha filha,” sussurrou Dona Carminha para Maristela Pereira. “Não fique assustada, ela apenas tá fazendo uma ponte para o outro lado. Seu guia espiritual chegará daqui há pouco”.

Madame Otília ficou meio puta da vida com a interrupção antes da hora e soltou um “Oooooooooh”. Em seguida, disse em uma voz alta: “Estás aí, meu guia?”

Esperou um pouco, para aumentar o suspense, e depois disse: “É você, Jerônimo?”

“Sou eu mesmo”, falou em nome de Jerônimo.

“Temos um novo membro hoje no círculo”, disse ela.

“É Maristela Pereira?” perguntou ela, como Jerônimo.

Ela ouvia no rádio as aventuras de Jerônimo, o herói do sertão, e gostou do nome para adotar para o seu guia espiritual.

“Oh”, guinchou Maristela. “Prazer em conhecer”.

“Ronaldo tá aí Jerônimo?” foi logo perguntando Dona Carminha.

Madame Otília, a ponto de perder a paciência, disse: “Tem um magote de almas perdidas aqui na porta da minha casa, talvez Ronaldo esteja no meio delas”.

Ela tinha aprendido que nunca deveria trazer Ronaldo no começo da sessão; se trouxesse Dona Carminha ia ocupar o resto da sessão dizendo a Ronaldo tudo o que tinha acontecido em Anus Mundi desde o seu último bate-papo (“… Ronaldo, você se lembra de Lurdinha, filha de Seu Toinho, virou puta e agora só quer ser chamada de Shirley; e Rosinha, filha de Seu Nonô, assumiu de uma vez e foi morar lá prás bandas de São Luis com uma mulher rica de uma família de políticos com um nome complicado”.

Um clarão de um relâmpago, seguido quase imediatamente de um estrondo de trovão fez Madame Otília se sentir bastante importante, como se ela tivesse feito isso sozinha. Foi ainda melhor do que as velas na “criação do clima”.

“Agora”, disse Madame Otília em sua própria voz, “Jerônimo gostaria de saber se existe aqui alguém chamado de Otacílio”?

Os olhos embaçados de Seu Otacílio brilharam. “É, é o meu nome”, disse ele.

“Certo, tem alguém aqui que quer falar com você”.

Seu Otacílio tava vindo às sessões fazia um mês e Madame Otília ainda não tinha conseguido imaginar uma mensagem particular para ele. Sua hora tinha chegado. “Você conhece alguém chamado de, hum, João?”

“Não”, disse Seu Otacílio.

“Bem, há alguma interferência celeste aqui. O nome pode ser José, ou Luis, ou Eraldo”.

“Eu me lembro de um José do tempo que eu tava no seminário,” disse Seu Otacílio.

“Sim, ele tá dizendo que foi do seminário”, disse Madame Otília.

“Mas eu encontrei ele na semana passada na feira de Picos e ele não parecia estar doente,” disse Seu Otacílio, um pouco perplexo.

“Ele tá dizendo prá não se preocupar, e que tá feliz lá em cima,” falou Madame Otília, que já tinha entendido que era sempre melhor dar a seus clientes boas notícias.

“Diz a Ronaldo que eu tenho umas novidades para contar a ele”, falou de novo Dona Carminha.

Aconteceu que, logo em seguida, algo veio mesmo do além e entrou na cabeça de Madame Otília.

“Sprechen sie Deutsch?”, disse “ele”, usando a boca da Madame Otília.

“Parlez-vous français?”

“Do you speak English?”

“É você, Ronaldo? “, perguntou Dona Carminha.

A resposta, quando chegou, foi bastante irritada.

“Não, de jeito nenhum. Uma pergunta tão besta como essa pode apenas ser feita em um país de ignorantes e desesperados, aliás, tenho visto muito isso durante as últimas horas. Minha Senhora, eu não sou Ronaldo”.

“Bem, eu quero falar com Ronaldo,” disse Dona Carminha, um pouco tensa. “Ele é baixinho e careca em cima da cabeça. Você pode chamá-lo, por favor?”

Houve uma pausa.

“Na verdade parece haver pairando por aqui um espírito com a sua descrição. Vou chamá-lo, mas você deve falar rápido. Eu estou tentando evitar a invasão dos Estados Unidos pela União Soviética”.

Dona Carminha e Seu Otacílio olharam um para o outro. Nada disso já tinha acontecido em sessões anteriores.

Maristela Pereira sentiu-se imediatamente como uma participante da ação dos espíritos para evitar uma guerra nuclear. Isso era muito mais do que ela esperava e começou logo a imaginar que Madame Otília fosse começar a manifestar o seu ectoplasma.

“Oi Carminha”, disse Madame Otília em outra voz que soou exatamente como a voz de Ronaldo. Em ocasiões anteriores, Ronaldo falava como Madame Otília.

“Ronaldo, é você?”

“Sim, Carminha”

“Certo. Agora eu tenho umas coisas para lhe contar. Para começar, eu fui ao casamento de Betinha sábado passado, aquela galega sarará que é mais velha do que Ronaldinho..”

“Porra Carminha, você nunca me deixou falar enquanto eu tava vivo. Agora que tou morto eu sei dessas coisas todas e vou lhe dar um recado: tou de saco cheio com essa sua chateação”.

Anteriormente, quando Ronaldo tinha se manifestado, ele dizia que estava feliz no além e que morava em uma casa parecida com uma pousada celestial. Agora ele falou irritado como o velho Ronaldo.

“Ronaldo, lembre-se de que você é doente do coração”.

“Eu não tenho mais coração, eu já tou morto. Cala a boca”, e o espírito de Ronaldo “cortou o papo” e foi embora.

“Você deve é estar morando com alguma rapariga nessa sua tal de pousada celestial. Tá pensando que eu não vou me virar por aqui também?”, ainda disse Dona Carminha.

“Bem, agora agradeço muito, senhoras e senhor, infelizmente estão muito ocupados lá em cima e cortaram a ligação”, disse Madame Otília, completamente baratinada com o que tinha acontecido.

Foi aí que Dona Carminha arrematou: “Severina Barracão, eu lhe conheço, você ainda tá de conluio com Ronaldo, pensa que eu não sei das idas dele prá sua pousada na beira da rodagem antes de você mudar de negócio?”

Seu Otacílio, um sujeito calado e percebedor, procurou em seguida um centro espírita sério e acreditado para tirar as suas dúvidas existenciais, e depois contou o acontecido na casa de Madame Otília ao avô de um conhecido meu de Anus Mundi, que recentemente me repassou as informações que tentei relatar quase sem botar nem tirar.

3 Comments

  1. L'éleve

    Andrei,

    Gostei muito dessa estória de Anus Mundi, que evocou lembranças de outros tempos.

    Conheci uma Shirley “bem suburbana e sardenta” nos meus tempos de infância e juventude no sertão da Paraíba, e também uma tal de Madame Lêda, que lia mãos e a minha mãe dizia que ela dava em cima dos maridos das suas consulentes e cobrava pela consulta quase igual a um doutor.

    Andava cheia de colares e a meninada gostava de dar uma espiada no ambiente da trabalho da Madame, uma casa baixinha e pequena em uma rua lateral da cidade, com o que entendo hoje ser uma profusão de sincretismo religioso e místico, com imagens de deuses indianos (o deus elefante e a deusa de 6 braços) ao lado de São Jorge e de um simpático Zé Pilintra. Na parede tinha também um “Coração de Jesus”.

    Não me lembro de imagens de Buda nesse panteão de Madame Lêda e Sidarta poderia ter dado mais detalhes da “decoração do consultório” da sua Madame Otília nessa parte da história de Anus Mundi.

    É engraçada a universalidade de como, ao olhar das viúvas, os seus falecidos maridos (os Ronaldo’s da vida) se tornam pessoas impecáveis… até que elas ficam sabendo que eles davam de vez em quando uma escapadinha para tomar uma cerveja na pousada na rodagem.

    Um grande abraço e que tenha um excelente Ano Novo junto com Olívia.

    L’èleve

  2. maria josé

    Esta estória me lembrou o filme ghost. MAs que está cheio de vigarista se passando por sensitivas isto é verdade mas que tem gente séria que se comunica com os que já nos deixaram também é verdade. Gostei , estes contos estão ficando muito interessantes.

  3. Sidarta

    Prezada consulente Maria José, NAMASTÉ!!!

    O budismo sugere que “se acredite e que não se acredite”. No frigir é: “acredite mas questione sempre, ou não acredite mas não fique cego e surdo a quem lhe parece confiável e diz acreditar”.

    Três pontos são essenciais no budismo: uma grande fé (que você se sentirá bem com o budismo), uma grande dúvida (questione tudo), e uma grande determinação!

    Sou muito tentado a seguir o último sermão de Buda, onde ele alerta os seus discípulos contra a crendice inquestionada nas mágicas e nos milagres, duas coisas a que fomos condicionados desde criança a aceitar por conta da nossa formação cristã e católica aqui pelo nordeste do Brasil.

    Os indianos, com mais deuses, e assim, com mais opções de berço, são naturalmente mais tolerantes. Foi mesmo uma pena terem matado o imperador Juliano antes dele ter resgatado os verdadeiros deuses de Roma lá pelo ano 300DC.

    Mas desconfie de possessões que são retiradas facilmente com Gardenal ou Lexotan… são “pebas”; e se algum intermediário com o mundo dos espitos, “algum espertalhao vivo nesse plano”, lhe der alguma coisa para beber quando você estiver sob o domínio de alguma entidade, peça antes para ler a formula e o prazo de validade da droga, psicotrópicos vencidos provocam reações desagradáveis.

    Sidarta

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