Um espaço de convívio entre amigos, que acabou por se tornar um arquivo protegido por um só curador.

Urinei num pneu quente…

Padre Vasconcelos defendia os interesses da Santa Madre Igreja Católica no sertão nordestino, lá pelos anos de 1950. Era o segundo de cinco filhos de Dona Clementina Vasconcelos, que enviuvara dois anos depois de parir o último dos rebentos.

Dona Clementina tinha um caráter forte, daquela força das coisas práticas. Ou seja, não era o capricho, a curiosidade e o mandonismo vazio das senhoras vazias. Era, em resumo, proprietária de terras e negociava com gados, algodão, tratava com os rendeiros, tudo com bom êxito.

O irmão mais velho do reverendo tivera a sorte ou o azar de ir estudar na Faculdade de Direito do Recife, numa época em que nem quinze anos de getulismo tinham conseguido abater a fatuidade e a vontade de ler em alemão. Acontece que o mais velho irmão Vasconcelos era, em Recife, um semi-rural e semi-rico, ou seja, casaria com a filha de algum desembargador.

O padre, evidentemente, fora ao seminário e tivera a sorte de não ter sido o de Olinda. Quer dizer que Pe. Vasconcelos era autenticamente padre, rural, fazendeiro e conhecedor de muitas frases em latim. Conservou-se nas suas terras e sucedeu à mãe no mando da fazenda.

Quando a viúva morreu, Padre Vasconcelos tomou seu lugar, com mais prestígio ainda, posto que o regime das duas dedicações não representava qualquer escândalo. Os irmãos e irmãs pouco interessavam-se pelos negócios de bois, vacas e rendas e o padre, por sua vez, pouco lembrava-se desses irmãos.

Quem o visse e com ele conversasse pela primeira vez acharia o reverendo meio escasso de espiritualidade e deveras prático. Talvez, só e só prático. Nada obstante, não podia ser acusado de negligente com suas obrigações de dizer missa, baptizar, confessar, dar extrema-unção, encomendar corpos, enfim, toda a rotina burocrática de um cura.

Padre Vasconcelos, sem o saber de conceito enunciado, era ortodoxo e andava à margem do preconceito romano do celibato. Todavia, não adotava o modelo consagrado dos grandes párocos. Antes, comportava-se, nisto de prevaricações, mais como um caixeiro viajante.

Essa ginecofilia diversificada não o punha em apuros espirituais, pois aprendera que a mudança quantitativa, para fazer diferença qualitativa, tinha que ser muita. Assim, um pouco de Aristóteles e muito de hipocrisia absolviam o homem e a disciplina ritual mantinha o padre. Ele sabia que metade de seus colegas elogiavam a lei de Deus de maneiras diversas e mais enérgicas que com o celibato.

Um belo dia, Pe. Vasconcelos manda um moleque da fazenda convidar o Dr. Teles para almoçarem um cabrito assado, no dia seguinte. O médico não estranhou o convite, porque não era malicioso, nem esses convites eram raros. Apenas eram mais rituais e presos a datas certas, porque o padre e o médico não tinham mesmo muitos assuntos em comum; não eram amigos nem inimigos.

O reverendo mandou o único sujeito da fazenda além dele capaz de guiar o jipe Willys apanhar o Dr. Teles na cidade, lá pelas dez e meia. Se ele mesmo fosse no jipe, seria uma deferência que todos estranhariam, porque Vasconcelos viajava muito, mas sempre só.

Teles chega na fazenda e é recebido com aperto de mão e a opção de um copinho de aguardente ou de licor de jabuticaba. Aceita a aguardente – boa para abrir o apetite – e senta-se confortavelmente no alpendre ensombrado, afrouxa um pouco o nó da gravata e pergunta como vai o anfitrião.

O padre nunca era loquaz nem calado demais. Tinha certa habilidade para ajustar o discurso às circunstâncias e aos circunstantes, sobretudo se as coisas girassem em torno a assuntos práticos, preços de propriedades, chuvas, barragens, gados. Com o Dr. Teles as coisas necessariamente girariam torno a estas trivialidades ou a qualquer coisa ligada à profissão do médico.

Para Teles, não parecia que o convite fosse alguma consulta disfarçada, porque nestas ocasiões as perguntas eram diretas, embora eufemísticas. Então, emendou a perguntar pelos cabritos, bodes, carneiros, bois, se os barreiros tinham água e coisas do tipo, ligadas ao mundo daquela ruralidade lenta.

O reverendo parecia disperso, mesmo que os assuntos fossem os seus e que tivesse sido ele a convidar o médico. Não se atinha à conversa, não bebia da aguardente mais que o suficiente para molhar os lábios, nem ansiava iniciar o almoço.

Já era quase meio-dia e não se podia mais adiar a comilança. O cabrito no forno de lenha e algo que faz até o cronista – distante cronológica e geograficamente – salivar enquanto escreve. Teles afrouxou um pouco mais a gravata, afastou um tantinho as bordas do colarinho, provavelmente por gentileza com as gotas de suor que por ali escorreriam…

Curiosamente, Padre Vasconcelos comia pouco e devagar, a ponto de chamar atenção do médico. Mas, como não se tratasse de encontro de íntimos e o código de conduta do tempo e do local não impusesse aos convivas a tagarelice que se impunha às mulheres, o Dr. Teles ficou-se pelos sabores do cabrito e pelos silêncios do padre.

Havia, não se sabe bem porquê, uma garrafa de vinho do Porto na casa da fazenda, coisa rara. Na altura em que a cozinheira ofereceu doce de caju, uma xícara de café forte e um cálice de Porto, Teles achou-se muito bem aquinhoado de hospitalidade num dia que não era santo, nem cívico.

Para a sobremesa, o café e o Porto, o anfitrião resolveu que passariam para a varanda alpendrada e mandou a cozinheira para dentro. Era melhor, porque corria um vento na varanda e o calor na sala estava opressivo mesmo se só tivessem comido uma salada de folhas.

Pelas tantas, o padre resolve-se a falar: olhe, doutor, queria lhe perguntar uma coisa. É bobagem, mas…

Diga lá, Padre Vasconcelos, que é que há?

É bobagem Teles, bobagem mesmo. Mas, é que tá um certo queimor incômodo aqui pelas partes, não sabe?

Sim, tá queimando quando urina, é Vasconcelos?

Pois é isso mesmo, Teles, e não é engraçado? Isso começou por uma besteira que fiz.

Sei como é…

Pois foi, doutor, tava um dia desses viajando no jipe, fazia um calor danado, daquele que não se sabe de onde vem o vento quente. Daí, parei pra urinar e foi no pneu do jipe, no pneu quente… Acho que a quentura do pneu subiu e ficou essa ardência… Foi burrice mijar no danado do pneu quente…

Padre, quando o senhor saiu do seminário, um sujeito de apelido Fleming, que acho que era escocês, sei lá, já tinha resolvido esse negócio.

Sim?

Olhe, passe lá em minha casa amanhã e vá com uma garrafa de licor, que o povo pensa que é um presente seu pra mim. E olhe, pode mijar até no motor do jipe, mas aquelas meninas da rua do açougue velho, padre, aquelas ali é melhor dar a comunhão só na missa mesmo…

2 Comments

  1. Sidarta

    Excelente texto. Fez-me lembrar de um certo padre aparentado da família e que foi assassinado pelos filhos do barão depois que a viúva do barão teve o último filho 10 meses depois da morte do barão…

  2. Artur Gianini Bezerra de Melo

    Sensacional! Esse bafo de pneu quente é doencinha que gostava de dar em padre.
    Parece que inventaram uma vacina ou remédio para esse tipo de doença, que não se vê muito mais. Minha ignorância nas farmácias e poções dos druidas, não me deixam lembrar o nome. Mas, salvo engano, não se trata de um fármaco, mas uma proteção plástica, meio emborrachada. Enfim, não sei!

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