Antes do Vale Abraão, tive só um contato com Agustina Bessa-Luís, por meio das Conversações com Dmitri e outros fantasmas, que me ofereceu Miguel. O livrinho, o primeiro que li, deu-me a impressão de uma autora profundamente aristocrática. Sim, há formas aristocráticas de escrever. Não necessariamente melhores que outras, nem, tampouco, relacionadas apenas ao pertencimento social que o qualificativo sugere imediatamente.

Não é, como sabem todos que pensaram, uma questão de dinheiro. É moda justificar-se e não o vou fazer. Não é frequente explicar-se e isso tentarei, porque fui assaltado por uma paciência meio rara e porque não quero induzir más percepções, assim logo de início. Não se trata de antiguidade daquele dinheiro referido no primeiro período, embora, sim, trata-se de antiguidade.

De antiguidade percebida como a possibilidade de afastar ou aproximar a lente do quadro. E de ter passeado a lente por todos os quadrantes, tantas vezes, que todos eles tornam-se familiares e trivial o deter-se em um detalhe, como o afastar-se deles todos e olhar o quadro de longe.

Li, em alguma revista, que Freud teria escrito o seguinte: Eu me surpreendo ao constatar que minhas observações dos pacientes podem ser lidas como romances. De minha parte, surpreendo-me um pouco ao constatar que Freud tenha sido tão sagaz, irônico e provocador, com uma observação destas, somente para dizer o óbvio. Um homem inteligente e cônscio dela tinha que dizer que a vida imita a arte de uma maneira aparentemente inocente, até porque o óbvio é o mais difícil de dizer.

E ele estava certo, uma coletânea de relatos clínicos pode ser lida como um romance, mas o inverso não é verdadeiro. A vida imita a arte…

Agustina é fina psicóloga, tanto das mulheres, quanto dos homens. De certa forma, o Vale Abraão é uma colecção de casos clínicos que duram uma vida e ligam-se a outras vidas já terminadas, muito intimamente. E ligam-se a vidas vindoiras, o que é psicologicamente uma expectativa de poder e, historicamente, quase um não conceito.

O livro tem as insinuações dos grandes autores, que só resultam bem neles. Insinuações claras, de Ema, de Carlos, de Bovarinha. Um amante dos jogos de palavras sai-se mal, se prender-se ao fácil de dizer que é, sem parecer. Nem parece, nem é. Aliás, parece-se com Flaubert – não no texto – parece-se com a conhecida frase Madame Bovary sou eu. Ema não é Bovary, ela é uma mulher que não foi adúltera dos finais do século XIX; ela foi uma mulher que seria toda se fosse homem, no último quarto do século XX.

 Minha primeira sedução, como sempre, é a historicidade; é descobri-la como inevitável. Ela muda de cores, conforme seja urbana ou rural, proprietária ou trabalhadora, refém de modas rápidas ou lentas, detentora de culturas formais ou não.

O tempo cronológico, neste romance, foi apontado uma vez: ele começa nos antecedentes dos Cravos. O tempo que os sucede é louco, teria que trazer novos impostores, que fazer suas justiças, que mudar os insignificantes por outros insignificantes. Há quem o perceba, ao tempo, e há quem seja levado por ele. A maioria vive o contínuo, que é o real, mas outros servem-lhe o prato da inadequação, porque ele é mais lento ou mais rápido conforme circunstâncias muito específicas.

Bastaria dizer que não há Bovary a matar-se com arsénico, para uma simples diferença. E a ação ocorre precisamente em uma ruptura que, de certa forma, pode ser vista como uma transição acelerada para uma cultura mais urbana. Talvez fosse mais preciso dizer uma penetração rápida de um espaço rural por uma cultura neo-urbana.

Ema morre acidentalmente e isso não é pouco. A época dela não a mataria, porque era de louca permissividade. Não alguma permissividade que aceite a diferença, mas que tem mais que fazer, o que significa buscar ganhar dinheiro e ostentá-lo da maneira mais vulgar possível. Ou seja, nem os estabilizados, social e economicamente, nem os ascendentes tinham tempo para o escândalo. Os primeiros, nunca o estimaram, os segundos só se ocupam dele quando totalmente inertes.

Não há piores épocas para quem quer viver plenamente, sem saber a que isso corresponda exatamente, que as de acelerações e rupturas. Sim, porque embora tudo fique como está, no fundo, tudo muda, aparentemente.

Paiva não se afasta de Ema. E não o faz porque sabe que a aprisiona e a ama. É diferente de não o fazer porque teme o escândalo. Não haveria mais escândalo na ruptura que na manutenção da ligação repleta de verdades meio-sabidas. Ema, por seu lado, não se separa de Carlos; e não é porque receie perda financeira ou escândalo. É porque está presa, sempre esteve…